Em pé, junto à porta da capelinha, ele passou os olhos pelos presentes. Eram os mesmos de sempre, vizinhos numa comunidade rural nos altos da serra da Mantiqueira. Não, desta vez havia uma menina que ele nunca vira antes. Estava sentada em um banco, ao lado do altar, entre outras mulheres da vizinhança.
Era loira e seus cabelos soltos chegavam perto da cintura. Ela olhou para onde ele estava, seus olhares se cruzaram e Diego ficou impressionado com a beleza dos olhos verdes, em um rosto encantador. Imaginou que ela não deveria ter mais que quinze anos.
A capelinha ficava ao lado de uma estradinha de terra que serpenteava por aquela serra, em cuja vizinhança havia vários sítios de propriedade de pessoas que moravam em cidades grandes e que os usavam para passar finais de semana e férias.
Ele morava e trabalhava em um sítio, onde funcionava uma clínica para tratamento de dependentes de drogas. Durante os quarenta e nove anos de vida ele exercera várias atividades, sendo que nos últimos vinte e dois, antes de se instalar naquele lugar, havia exercido a função de engenheiro civil, dirigindo e administrando obras dos mais variados tipos de edifícios.
Embora desfrutasse de bom conceito profissional, tendo sua capacidade reconhecida; sentia-se insatisfeito com as relações econômicas e sociais que envolviam seu trabalho. Considerava um despropósito que capitalistas cobrassem qualidade em serviços executados por operários em quem não se investia na sua formação, em condições de trabalho e que eram miseravelmente remunerados. Deplorava negociatas que beneficiavam exploradores em detrimento dos mais fracos. Sentia revolta pela corrupção que grassava por todos os lados.
Seu casamento havia fracassado depois de mais de vinte anos, onde os últimos cinco haviam sido de constantes conflitos.
Quando um amigo comentara que o tratamento de dependentes de drogas oferecia boas possibilidades financeiras e que pensava em investir nessa área; ele vislumbrou a possibilidade de livrar-se dos tormentos que o afligiam. O amigo defendia que esse tipo de tratamento deveria ser oferecido longe dos centros urbanos, propiciando isolamento, ambiente calmo e clima saudável. À medida que o amigo descrevia as condições ideais, ele as visualizou na mente: o sítio de um amigo falecido, que estava abandonado, localizado no alto de uma serra, com clima saudável e com espaço para o desenvolvimento de atividades ao ar livre.
Procuraram a viúva, acertaram as condições de arrendamento do sítio, formaram uma sociedade e se empenharam nas providências para iniciar as atividades. Ele ficou encarregado de adaptar o local, reformando e construindo o que fosse necessário, além de residir ali e administrar o negócio. O sócio se encarregaria de divulgar o empreendimento, conseguir clientes e cuidar da parte financeira; além de conseguir o pessoal que ministraria o tratamento. Ele passaria a residir no sítio enquanto o sócio permaneceria na cidade, onde mantinha outros negócios.
Ele considerou que havia sido bafejado pela sorte, tendo a oportunidade de se afastar dos problemas que o vinham atormentando, podendo desfrutar a vida tranqüila do campo, ao mesmo tempo que se sentiria útil colaborando para que dependentes de drogas pudessem abandona-las, reintegrando-se na vida normal da sociedade.
Naquela noite, ele havia levado os internos e os aplicadores do tratamento, para assistir a missa, que mensalmente era realizada naquela igrejinha. O tratamento para a recuperação dos dependentes se baseava na religiosidade. Diego era agnóstico, não considerava razoável que o tratamento tivesse embasamento tão forte na religiosidade, mas aceitava essa condição porque era o método mais utilizado nas instituições com essa finalidade e, principalmente, porque o pessoal contratado para trabalhar ali não conhecia outro. Tanto o coordenador do tratamento quanto os monitores que o auxiliavam, eram ex-dependentes de drogas, egressos de instituições de tratamento, onde aprenderam o método que utilizavam.
Cada vez que Diego olhava para o lugar onde estava a menina, percebia que ela o observava.
Ao final da cerimônia, os participantes formavam grupinhos em frente à capelinha e conversavam. Uma mulher da comunidade acercou-se de Diego para agradecer-lhe por ter vindo e trazido os internos para participar da cerimônia. Uma irmã dela, que havia se separado do marido e que estava morando com os pais que trabalhavam no sítio que ficava em frente à igrejinha; acercou-se para cumprimenta-lo também. A menina que ele havia notado, no interior da igreja, estava com ela e ele ficou sabendo que era sua sobrinha. Outra mulher cumprimentou Diego e perguntou às que já estavam com ele se não iriam no baile que aconteceria em um bar das vizinhanças. Elas disseram que gostariam de ir, mas que não se sentiam dispostas a caminhar os três quilômetros para chegar lá e que tinham medo de voltar sozinhas ao final do baile. Diego disse que teria que levar o pessoal de volta para a clínica, mas que se elas quisessem, ele poderia voltar e leva-las e a quem mais quisesse ir. Ele tinha uma camioneta e, sempre que possível, se dispunha a transportar pessoas, procurando minimizar os problemas de transporte naquele lugar.
Depois de deixar os internos na clínica, Diego voltou à igrejinha e levou várias pessoas até onde se realizava o baile. Como tinha o compromisso de participar das reuniões noturnas entre os internos e os responsáveis pelo tratamento; deixou as pessoas ali, prometendo ir buscá-las mais tarde, levando-as de volta para casa.
Quando voltou para pegar as pessoas, Diego, enquanto esperava que elas se reunissem junto à camioneta, conversava com a tia da menina e ela permaneceu junto a eles, observando e ouvindo. Depois que as pessoas se acomodaram na carroceria da camioneta, Diego sentou-se ao volante, a tia da menina ao seu lado e ela junto a porta do carona. No caminho de volta, enquanto continuava a conversar com a tia, Diego observava que a menina não tirava os olhos dele. Ao chegar à igrejinha, todos desceram, agradeceram a carona e Diego voltou para a clínica.
No caminho de volta, Diego pensava no que teria chamado a atenção da menina para ele, levando-a a observá-lo com tanta insistência. Via-a como o que era: uma menina, adolescente, com idade próxima da idade da filha mais nova dele. Durante a vida, devido a suas participações em movimentos políticos, principalmente estudantis; ele se acostumara a ser olhado daquela maneira, como uma espécie de mito, devido as idéias que defendia, que contrariavam o sistema dominante; principalmente acusando a exploração dos poderosos sobre os mais fracos. A admiração que causava, principalmente nos mais jovens; se devia a sua postura contestadora. No entanto, não se lembrava de ter dito algo que pudesse ter chamado a atenção daquela menina.
DUAS EM UMA
Ela é totalmente diferente dos irmãos, que nasceram depois. Loira de olhos verdes, quando os irmãos tem cabelo preto e olhos escuros.
Nasceu na roça, onde viveu até o despertar da juventude.
Era uma vida dura! O pai bebia muito e, por isso, trabalhava pouco e não conseguia comprar o suficiente para a alimentação da família. Para quem trabalhava normalmente, já era bastante difícil sustentar uma família. Imagine a dificuldade de alguém como ele, que passava mais tempo bêbado do que sóbrio.
Os parentes e vizinhos ajudavam como podiam, mas não podiam muito. O avô materno, quando podia, cavalgava vinte quilômetros desde sua casa até a da filha e trazia alguma coisa: frangos, ovos e coisas assim.
Era tão difícil ter carne na refeições que, quando tinha, ela comia um pouco da parte que lhe cabia e guardava um pedaço pra comer em outras refeições. Várias vezes aconteceu, que esquecia que havia guardado o pedaço de carne, só lembrando quando o mau cheiro chamava a atenção da mãe, que procurando o que o causava, encontrava o pedaço de carne podre entre as roupas. Ela guardava a carne no guarda-roupas porque se deixasse a vista, seria comida pelos outros.
Nessa época a vida era tão dura que um tio da mãe dela, que tinha doze filhos, passava por grandes dificuldades para alimentar a família. Aos domingos sempre tinha um frango para o almoço que era dividido pela família toda. Ele pegava aquela parte que vem o ossinho do jogo, aquele em forma de vê que uma pessoa pega em cada perna do osso e puxa. Quem ficar com o pedaço maior ganha o jogo. Ele comia a carne e guardava o ossinho sobre o armário da cozinha. Nas refeições do resto da semana, ele colocava o ossinho sobre a beirada do prato e comia o arroz com feijão e farinha, imaginando que saboreava a carne que já o envolvera.
Desde criança ela tinha uma espécie de premonições, tinha conhecimento de coisas antes que elas acontecessem. Soube da morte de pessoas, antes que a notícia chegasse, e muitas outras coisas. Ela costuma dizer que era o “santinho” que lhe contava as coisas. Não era uma revelação clara, definida; era uma espécie de sentimento indicando o que iria acontecer.
A menina foi crescendo, mudando de um lugar para outro mas sempre passando dificuldades. Até que a mãe cansou e resolveu deixar o marido.
Há algum tempo a mãe dela vinha mantendo um romance, as escondidas, com um rapaz da vizinhança. Encontravam-se as escondidas e foram levando o romance sem que ninguém soubesse do que estava acontecendo entre eles.
Ela vivia reclamando da vida que levava, do marido que vivia embriagado, das dificuldades para alimentar e tratar das filhas. Não amava o marido, casara-se por imposição dos pais. Agora, estava apaixonada pelo amante e ele dizia, também, estar apaixonado por ela. Certo dia combinaram que iriam embora daquele lugar e passariam a viver juntos. Combinaram que ela sairia de casa e o encontraria em uma cidade vizinha.
No dia combinado, logo depois que o marido saiu, ela juntou as poucas coisas que tinha, pegou as filhas, pegou uma carona com um vizinho que ia para a cidade e foi embora. Foi para a cidade vizinha e esperou pelo amante. O dia foi chegando ao fim e o amante não apareceu. Ela procurou uma conhecida que morava ali e esta a hospedou. Mais dois dias passaram e o amante não apareceu, nem deu notícias. Finalmente ela teve que se conformar, admitir que fôra enganada, que o amante não tivera coragem de cumprir o combinado.
A mãe conseguiu trabalho naquela cidade, numa casa de família, e passaram a morar numa casinha nos fundos da casa principal. A patroa era muito boa mas o marido dela era um traste e, pouco tempo depois, tentou seduzir a mãe da menina. Ela se queixou para a patroa e ambas foram até a delegacia dar parte do homem. A mulher deu entrada no processo de separação e o homem deixou a casa. Patroa e empregada, ambas sem marido, agora, conviveram em harmonia por um bom tempo.
A avó era uma senhora muito religiosa e bastante enérgica. O avô era um homem pacato, calmo, e muito respeitado por todos, principalmente pelos filhos e netos. A avó ficou sabendo onde elas estavam e foi procurá-las. Acreditara que ela havia fugido com outro homem, mas ao encontrá-las naquela casa, onde ela trabalhava e vivia só com as filhas, acreditou ter-se enganado. Acreditou que ela abandonara o marido por causa da bebida e das dificuldades. Tentou convencê-la a voltar para o marido, prometendo ajudá-la no que pudesse. Como ela se negasse a voltar, a sogra ameaçou tirar-lhe as filhas. Ela continuou irredutível e a sogra foi embora, ameaçando fazer o possível para conseguir a posse das meninas.
Nessa época, a menina tinha dez anos de idade. Ao perceber a luta em que a avó se empenhava para conseguir sua posse e a da irmã; decidiu agir. Ofereceu-se para ir morar com a avó, desde que esta deixasse que a irmã continuasse com a mãe. Conseguiu seu objetivo, foi com a avó e esta deixou a nora em paz, em companhia da outra filha.
Era uma menina obediente, comportada em casa e arteira no terreiro. Prezava a condição de ser considerada uma boa menina. Gostava de brincar de ser motorista de caminhão. Ajeitara uns paus no terreiro, pra fazer de conta que era a cabina de um caminhão e, sobre um pau, que espetou lá dentro, colocou uma tampa de panela velha, pra fazer as vezes de volante. Quando não estava na escola ou fazendo atividades domésticas, que a avó fazia questão que aprendesse cedo, metia-se no seu caminhão e viajava Brasil a fora. O caminhão quebrava, ela o consertava, trocava pneus, arrumava carga, descarregava, em fim, era uma verdadeira camioneira. Como nunca saíra daquela região, todos os lugares para onde viajava eram pura imaginação, fantasia.
Além de brincar de motorista de caminhão, brincava, também, de boiadeiro. É isso mesmo, boiadeiro! Ela não era motorista mulher, era homem e, também, se fazia de homem para brincar de boiadeiro. Viajava tocando boiadas, vencendo longas distâncias, trinta, quarenta dias para chegar no destino. Corria atrás de bois desgarrados, controlava estouros da boiada, participava de festas em lugarejos e cidades por onde passava, em fim, era um boiadeiro dos bons.
Tinha um primo um pouco mais novo que ela, que morava próximo e que era seu companheiro de brincadeiras. Nas brincadeiras ela era sempre homem, por isso eles se tratavam de compadre. Gostavam muito de andar a cavalo e, quando lhes permitiam, montavam e cavalgavam durante horas por aqueles matos, levando estilingues pra matar passarinhos.
Tinha uma tia, irmã de seu pai, pouco mais velha que ela, mas igualmente moleca. Nessa época ela tinha dez anos e a tia, quinze. A tia já trabalhava no escritório de uma empresa que retirava madeira na região, mas qualquer tempo que tivessem, ela deixava o caminhão de lado, soltava a boiada num pasto, e brincava com a tia companheira. Gostavam de passar esmalte de unhas nos cílios, o que as fazia derramar um mar de lágrimas enquanto riam a valer. Eram grandes companheiras e brincavam como menininhas, o tempo todo disponível.
O pai era alcoólatra e vivia caindo pela estrada entre a casa e a venda, que ficava a uns três quilômetros. Muitas vezes ela acordou a avó, de madrugada, pedindo que fossem buscar o pai pois ela sabia que ele estava em dificuldade. Saiam as duas e, normalmente o encontravam em estado deplorável. Numa noite de inverno o encontraram caído em uma valeta quase congelado. De outra vez, ele fora atacado por um cachorro que quase lhe arrancou uma orelha a mordidas.
Todos o criticavam, menos ela que o defendia com unhas e dentes. Criticava-o e o aconselhava quando ele estava sóbrio (que era difícil), porém virava fera quando alguém falava mal dele.
Durante a infância, sofreu bastante com bronquite. sofria com a falte de ar, tendo desmaios. Quando era muito pequena, teve uma espécie de desmaio tão longo, que uma rezadeira vizinha diagnosticou sua morte. A vizinhança chegava para o velório, quando ela "ressuscitou". De outra vez, teve uma crise renal e ficou muito tempo sem urinar. Levada ao hospital, tiveram que introduzir uma sonda para alivia-la. Teve a primeira menstruação aos dez anos e junto vieram cólicas e dores de cabeça fortíssimas. Logo depois que os pais se separaram, ela estava morando com a mãe, quando certo dia começaram a aparecer manchas vermelhas no seu corpo e no da irmã, que se transformavam em feridas, Os tratamentos médicos que lhes ministraram não surtiam efeito e as feridas continuavam a se espalhar pelo corpo. Levaram-nas a um hospital de base e nada de melhora. Uma vizinha recomendou que as levassem a um benzedor em Santo Antonio do Pinhal. O homem diagnosticou que uma pessoa que havia pedido um mal para elas. Disse que ele providenciaria a interrupção daquele trabalho e que no dia seguinte, estariam boas. No dia seguinte as feridas começaram a desaparecer e em pouco tempo, desapareceram totalmente. Sofrimentos não lhe faltaram na infância.
Ela era obediente mas voluntariosa. Quando tinha onze anos, pediu à avó que a levasse para visitar sua mãe, que estava morando com outro homem numa cidade próxima. A avó disse que não poderia levá-la naqueles dias por estar muito ocupada e porque, para ir lá, precisavam de tempo, uma vez que só para chegar na cidadezinha do local onde moravam, era preciso acordar de madrugada, andar até a venda e, lá, pegar o caminhão do leiteiro. Ela esperou até o dia que a avó resolveu leva-la. Chegaram na casa da mãe e enquanto esta conversava com a avó, ela brincava com a irmã mais nova. No final da tarde a avó a chamou pra irem embora, pois iriam até a cidade delas, dormiriam na casa da irmã da avó, para, no dia seguinte bem cedo, irem para casa no caminhão do leite. Ela simplesmente se recusou a voltar com a avó e não houve Cristo que a fizesse voltar. Ficou com a mãe até que lhe deu vontade de voltar pra casa da avó. Como a mãe, nem o padrasto quisessem que ela fosse e se negassem a leva-la; deu um jeito de mandar recado para a avó, que depois de algum tempo foi buscá-la. A mãe retrucou, brigou, mas não teve jeito, ela foi embora com a avó. Tanto quando se negou a voltar com a avó, quanto quando resolveu voltar, não fez birra, não esperneou, nada de malcriação; simplesmente se manteve irredutível, firmou posição e, a não ser que a matassem, não arredou pé um segundo de sua vontade. Impressionava o comportamento dela defendendo o que queria, não argumentava, simplesmente afirmava, mantinha a posição com uma passividade assustadora.
A vida lhe destinou mais um golpe. A tia companheira, morreu de repente, de um ataque cardíaco. Foi uma perda irreparável! Não pôde participar do velório, pois mal voltava de um desmaio, outro o sucedia. Foi um sofrimento muito grande. Ela sonhava com a tia quase todas as noites e, muitas vezes tinha a impressão de que não eram sonhos; que a tia estava ali com ela.
Um tio, que namorava uma moça de um sítio vizinho, obrigava-a a ir com ele, quando ia namorar. Ela se apegou ao pai da moça, um homem viúvo e muito bom. Passou a visita-lo durante o dia, quando o ajudava no serviço de caseiro, a limpar o gramado, a piscina, cuidar da horta e outros serviços que fazem parte da rotina de um caseiro,. Um dia o homem foi à cidade e, na volta lhe trouxe um par de botas de borracha, que ela há muito desejava mas nunca tivera. Fôra como se tivesse ganho um anel de brilhantes!
Nas horas de folga, ela e o homem jogavam futebol, baralho, ele contava estórias e, ela, adorava.
Pouco mais de um ano do início dessa amizade, o homem ficou doente e teve que ser internado. Certo dia, algo lhe disse que o homem havia morrido. No final da tarde, ela viu chegar um vizinho procurando por sua avó e lhe transmitiu a notícia da morte do homem. Outro golpe dolorido para aquele coraçãozinho tão maltratado.
Depois de algum tempo, a mãe se mudou para um sítio, próximo de onde moravam seus familiares, num vilarejo há vinte quilômetros de onde a menina morava com os avós. A ligação era por estrada de terra e a única condução pra vencer o percurso era uma kombi que trazia e levava estudantes entre os dois vilarejos; uma vez que as crianças que moravam no vilarejo da mãe, para estudar a partir da quinta série do primeiro grau, tinham que ir na escola da cidade e, o ônibus que as transportava até lá saia da venda do vilarejo onde ela morava. Portanto a kombi saia do vilarejo da mãe por volta das cinco horas da manhã deixava os estudantes no ônibus e os pegava novamente quando o ônibus os trazia de volta, por volta da uma hora da tarde.
Aí é que não havia quem a segurasse. Quando cismava, saia da casa da avó e ia pra da mãe passar um tempo. Quando cismava de novo, voltava. Todas as vezes pretendiam segura-la, impedi-la de ir mas, trabalho infrutífero; ia e pronto. Não brigava, simplesmente ia. Quantas vezes lhe disseram: “você não vai, pode desistir". Quando a procuravam, já tinha ido, já estava no lugar pretendido.
Logo que a mãe se mudou para lá, na primeira vez que foi visita-la e passou um tempo por lá; brincava com a irmã e outras meninas em frente a igreja do vilarejo, quando parou um carro branco, desceu um homem, dirigiu-se a elas e puxou conversa. Logo depois pediu para ver a mão dela. Ela era rebelde com estranhos e teria se recusado a permitir que o homem visse sua mão. No entanto, estendeu a mão e permitiu que o homem a segurasse e olhasse. Ela não acreditava em bruxarias e exoterismo, embora acreditasse no seu “santinho”. Depois de observar sua mão, ele lhe disse que via um casamento, mas que este não se realizaria. Que o homem de sua vida era estrangeiro e que estava muito longe, mas que chegaria até ela. Que, aos vinte e dois anos, algo marcante aconteceria em sua vida., Disse-lhe que ela morreria por volta dos cinqüenta anos, em acidente automobilístico.
As outras meninas pediram ao homem que também lesse suas mãos e ele, a contra gosto, leu. Ela não acreditou numa palavra do que ele disse, embora as outras meninas tivessem ficado impressionadas com as palavras dele.
O tempo passou e, por volta dos quinze anos, a irmã namorava um menino da vizinhança e, num dia que a mãe fôra para a cidade e só voltaria no dia seguinte, o namorado da irmã levou um amigo na casa dela, à noite, quando foi namorar. Enquanto a irmã namorava, ela conversava com o amigo do menino. Estavam nisso, quando o pai da mãe delas chegou e fez um tremendo escândalo, acusando-as de estarem fazendo o que não deviam, que aquilo não era comportamento de meninas direitas e uma porção de outras coisas. No dia seguinte, quando a mãe chegou, encontrou uma reunião familiar a sua espera, lá estavam os pais, irmãos, cunhados e, até, alguns vizinhos. Contaram-lhe o que acontecera e decidiram em conjunto que elas deveriam casar pra reparar o erro cometido. O namorado da irmã, se negou de pronto, enfrentou a situação e disse que não casaria de jeito nenhum, que não havia acontecido nada que justificasse o que eles pretendiam. O menino que estava com ela não era tão corajoso e concordou em casar, mas que tinham que esperar ele colher uma roça de milho que plantara com o pai, para ter dinheiro para o casamento. Ela retrucou um pouco, mas como o rapaz não se negasse e ela percebesse que a briga seria indigesta, ficou quieta.
Dali a alguns dias, a comitiva foi para a cidade e marcaram o casamento. Há poucos dias do dia marcado, ela simplesmente disse que não iria casar e, pra se livrar da pressão, pegou a kombi de madrugada e foi para a casa da avó. E não casou mesmo, mesmo com toda a pressão que sofreu. A avó paterna apoiou-a na decisão, mas os parentes do lado da mãe, ficaram pra lá de bravos, afinal já haviam convidado todo mundo para o casamento.
Depois de algum tempo, ela voltou para a casa da mãe. Começou a estudar na escola do vilarejo, mas pouco tempo depois, disse à professora que iria desistir pois precisava trabalhar para ajudar a mãe e o único trabalho disponível era nas plantações de batata, o que a impediria de freqüentar a escola. A professora convidou-a a trabalhar no período da tarde, ajudando-a, ganharia alguma coisa e não precisaria abandonar os estudos.
Ela aceitou e começou a trabalhar na própria escola e na casa da professora, ajudando-a no que precisasse.
Depois de algum tempo, a merendeira da escola deixou o trabalho e a professora pediu-lhe que substituisse a mulher e passasse a se encarregar da merenda.
Não pôde continuar estudando pois esse trabalho a ocupava o dia inteiro. Era bastante sacrificado, pois além do trabalho, tinha que caminhar entre sua casa e a escola, cuja distância era bastante grande. Trabalhou até o final do ano, quando lhe comunicaram que não poderia continuar no ano seguinte, pois essa função deveria ser desempenhada por quem prestasse concurso público e ela não poderia fazê-lo por ser menor de idade. A solução foi ir trabalhar na roça de batatas.
Ela tinha muita facilidade pra fazer amigos, era muito simpática e agradável, somando-se a isso, era diferente de todo o pessoal daqueles lugares. Era mais bonita que qualquer outra, mas não era diferente só pela beleza; era inteligente, sensível e corajosa. No tempo em que trabalhou na lavoura de batatas, embora fosse um trabalho duro e desgastante, procurava se divertir, conversando com os companheiros, brincando, alegrando a todos. Na volta da roça, paravam no bar e ela bebia pinga como qualquer dos companheiros de trabalho.
Nessa época, conheceu um rapaz, estudante de medicina, que fora passar uns dias no sítio perto do sítio em que mãe dela trabalhava. Logo ficaram amigos e passavam muito tempo conversando, dia após dia. Quando se aproximava o dia de ele ir embora, conversavam e falavam sobre o fato de que se tornaram amigos, sem qualquer intenção de namoro. Ambos eram atraentes e tinham pretendentes de sobra; no entanto, não aconteceu atração entre eles. Conversaram bastante sobre isso, até que ela disse a ele que gostaria de perder a virgindade assim: com alguém por quem não estivesse apaixonada, nem tivesse qualquer compromisso. Há tempo que decidira deixar de ser virgem, mas não encontrara, até alí, alguém com quem valesse a pena realizar esse desejo. Tiveram a relação, que se mostrou muito ruim para ela, pelas dores que sentira o que os obrigou a termina-la mais rápido do que seria de se esperar, embora o objetivo tivesse sido alcançado.
Uma conhecida que morava numa fazenda muito próxima da cidade, cujo marido tinha um posto de gasolina, convidou-a pra trabalhar como doméstica em sua casa e ela aceitou. Mudou-se pra casa da tal mulher. Trabalhou um bom tempo, oito meses, cuidando dos filhos dela, que eram pequenos, cuidando da casa, lavando roupa e passando, inclusive fazia queijos com o leite que era tirado na fazenda. Trabalhava mas não recebia. A mulher se fazia de desentendida e ia adiando o pagamento. Um dia, ao visitar uma tia que morava na cidade, na conversa, contou que não recebera nada de pagamento até ali. A tia ficou revoltada, disse-lhe para não ir mais, que ficasse em sua casa e arrumasse um emprego, pois trabalhar sem receber é escravidão.
Ela conseguiu emprego numa indústria eletrônica, começou a trabalhar e foi morar na casa da tia, a quem pagava pensão. Desde criança, gostara de um menino que fôra vizinho de seus avós paternos, na roça. Ele, agora, morava na cidade, se encontraram e começaram a namorar. No final do ano, a irmã do rapaz convidou-a para passar o natal na casa de parentes numa cidade próxima. Ela foi para ficar uma semana, porque teria esse tempo de folga na fábrica. Mas logo depois do natal, percebeu que o namorado não lhe dava atenção, ficou desgostosa com aquilo e resolveu que iria embora. Comunicou isso ao pessoal e a uma amiga que fôra com ela. Resolveram que iriam as duas. Foram até o centro para comprar passagens de ônibus, que por sinal, não ia direto para a cidade delas, teriam que ir até outra cidade para, depois, pegar o que as levaria para casa. No caminho encontraram um rapaz que morava próximo da casa de sua mãe. Quando soube que iriam embora, disse-lhes que ele também iria, de carona com um amigo, que talvez ele as levasse também. O amigo do rapaz não colocou qualquer impecilho e levou-as. O rapaz que lhes deu carona, com quem conversaram bastante durante a viagem e que simpatizara muito com ela, no final da viagem, convidou-a pra tomar uma cerveja qualquer dia e ela aceitou. Ela se sentiu atraída por ele, principalmente porque ele disse ter sido motorista de caminhão.
Dias depois, saíram para tomar cerveja e começaram um romance. Ele era casado, mas alegava que iria se separar da esposa, que não gostava dela, que já passara do tempo de se separar. Que agora, apaixonado por ela, aceleraria o processo. O romance durou algum tempo, saiam bastante, se divertiam e curtiam aquela relação. No entanto, ela começou sentir que não era aquilo que queria para sua vida. Ele, embora falasse muito em divorciar-se, não tomava nenhuma decisão efetiva para desencadear o processo. Ela tentou terminar o relacionamento, mas ele não concordou. Continuou a procurá-la, a insistir para a continuidade. O que a aborrecia era que ele lhe dissera que era estéril e, ela soubera que a esposa dele estava grávida. Ela tentava terminar o relacionamento e ele teimava, insistia, procurava-a, em fim, não se conformava com a separação e não lhe dava sossego. Era muito ciumento, tanto é, que pagava a um menino, vizinho dela, para vigia-la e contar-lhe o que ela fazia quando não estava com ele. Ela sempre teve um forte princípio de fidelidade. Ele continuava, agora, perseguindo-a, tentando reatar o relacionamento. Num final de semana, houve um casamento no vilarejo que a mãe dela morava. Ela foi na festa e ele apareceu e ficou observando-a. Ela, quando viu que ele estava lá, não teve dúvida, pegou um rapaz que estava a seu lado, que a paquerava e beijou-o, só para que o outro visse e resolvesse dar-lhe paz. Não adiantou, ele continuou insistindo.
Ela, que havia deixado de trabalhar na fábrica e voltara a trabalhar na roça, recebeu um pedido de uma tia que morava perto da casa da avó paterna e para quem fazia alguns servicinhos quando criança, ela pediu-lhe que fosse ajuda-la, pois estava grávida e precisava de ajuda na manutenção da casa. Ela não titubeou, foi de imediato. Era a chance de se livrar do seu perseguidor.
Na casa da tia, começou a ouvir falar de uma clínica para tratamento de drogados, que fôra instalada num sítio nas imediações. Falavam muito do responsável pela clínica, que era um homem de São Paulo, que não tinha família ali e que morava nesse sítio. Tanta gente falava tanto desse homem, que ela começou a ficar curiosa. Numa noite, na igrejinha em frente ao sítio onde a avó morava e da qual ela tomava conta, houve uma reza e o responsável pela clínica ficara de levar os internos para a reza. Ela já estava curiosa, de tanto ouvir falar dele e, na igrejinha, esperava que eles chegassem para, finalmente, conhecer o tão falado homem. Quando chegaram, ela viu à frente deles um homem de uns cinqüenta anos, baixo e no qual não viu nada de interessante. Perguntou à tia que estava a seu lado, se aquele era o tal homem. A tia disse que não, que era o outro que ficara junto a porta. Olhou para ele e sentiu algo diferente, algo que nunca lhe acontecera.
Ele era bem mais velho que ela. Ela tinha dezessete anos e ele quarenta e nove. A tia, que estava separada do marido, disse a ela que pretendia ter um relacionamento com o homem. Que ela deveria ajuda-la nesse intento, pois ele se mostrava refratário a relacionamentos. Ela se prontificou a ajuda-la.
Como era tempo de festas juninas, na redondeza havia, frequentemente, rezas, quermesses e festinhas naquele bar, onde havia bingo e baile. Ela começou a ir com a tia a esses eventos e quase sempre o encontravam. Começaram a conversar e ela começou a se interessar por ele, sentindo-se fortemente atraída. Ele também ficara muito impressionado por ela. Conversavam bastante e ele se surpreendia com as idéias que ela tinha, a maneira como falava, diferente daquele usual na região. Achava muito estranho que uma menina criada num lugar como aquele, pudesse ter uma visão, de várias coisas, como alguém que tivesse cultura maior que a dela e que conhecesse muitos outros lugares. Além da beleza, ela o impressionara fortemente, o que aumentava a cada dia que se encontravam e conversavam. Ela percebeu que estava apaixonada e ele também.
Ele relutava, sabia que ela era uma menina, pouco mais velha que sua filha mais nova, além do que, era neta e sobrinha de amigos a quem apreciava muito. Achava que um relacionamento com ela iria gerar muita confusão e contratempos. Ele era separado da mulher já há alguns anos.
Ele verificava que estava cada vez mais apaixonado e via o conflito interno aumentar. Ela também estava apaixonada, queria-o, mas ele resistia. Não falavam sobre isso, apenas sentiam. A paixão dos dois chegou a tal ponto, que faltou-lhes forças para continuar resistindo e resolveram assumi-la, as escondidas, no começo.
Ambos tinham consciência de que um relacionamento amoroso entre eles seria visto como uma aberração. No entanto, a emoção era muito mais forte que a razão e a coerência. Até então, só tinham se encontrado e conversado nos bailes esporádicos que o dono do bar promovia e em quermesses dedicadas aos santos juninos. Combinaram que se comunicariam através de bilhetes, deixados sob uma viga de madeira que ficava sobre uma mureta no salão de festas que ficava ao lado da igrejinha. Escolheram aquele local porque era próximo da casa dos avós dela, onde estava morando.
Num final de tarde, o coordenador do tratamento na clínica se desentendeu com um dos monitores; brigaram e o monitor, pegando uma faca na cozinha, correu atrás do coordenador, que se refugiou em uma das casas que servia de alojamento. Enquanto o monitor tentava forçar a porta, o coordenador saiu pela janela, correu até a camioneta e pediu a outro monitor que o levasse dali.
Quando Diego soube do que estava acontecendo, correu até a casa e dominou o colérico monitor, tirando-lhe a faca e procurando acalmá-lo.
O coordenador e o monitor que o levou na camioneta, deixaram-na em uma cidade próxima, ligaram para a clínica avisando o local onde a haviam deixado, pegaram um ônibus e foram embora.
O monitor que tentara esfaquear o coordenador, partiu na manhã seguinte.
Restaram dois monitores, mas estes, se negaram a ser coordenados pelo Diego. Este ligou para o sócio comunicando o ocorrido e pedindo-lhe que providenciasse outra equipe. O sócio disse-lhe que seria difícil conseguir outro pessoal.
Sem outras opções, Diego se viu obrigado a assumir o comando do tratamento. Como os dois monitores que sobraram se negassem a obedecê-lo, Diego dispensou-os e ficou sozinho cuidando da clínica e ministrando o tratamento.
Os responsáveis pelos internos foram comunicados do que acontecera e alguns decidiram retirar seus filhos da clínica. No entanto, a maioria continuou lá.
Diego convocou uma reunião com os responsáveis pelos internos. Comunicou que a experiência adquirida desde o começo do funcionamento da clínica até ali, lhe havia indicado que algumas alterações deveriam ser introduzidas. Que pretendia acabar com o total isolamento em que os internos eram mantidos, passando a promover algum relacionamento com a comunidade local, convidando vizinhos para visitar a clínica e, quando fosse possível, levando os internos a participar de eventos na comunidade. Ele defendia que os internos, além de perderem a dependência de drogas, deveriam ser resocializados, recapacitando-se para o convívio em sociedade.
Os responsáveis pelos internos consideraram razoável o que ele defendia e deram-lhe um voto de confiança. Ele promoveu dois internos, que já estavam no final do tratamento, a monitores e deu início a implantação do novo sistema.
Em pouco tempo os responsáveis pelos internos e, eles mesmos, verificaram que o novo sistema era melhor que o antigo e prometia resultados melhores.
O sócio do Diego, no entanto, era muito tradicionalista e se opôs ao novo sistema. Como os internos e seus responsáveis apoiassem o novo método, ele não teve como forçar o retorno ao método antigo, mesmo porque não tinha equipe para reimplantá-lo. Não conseguindo impor o que queria, o sócio passou a sabotar o empreendimento, deixando de mandar clientes.
Dois dias depois de Diego e a menina Mary terem combinado se comunicar através de bilhetes; ele deixou o primeiro no lugar combinado. Era uma poesia que ele fez exaltando sua beleza e o amor que sentia por ela. Para não correr o risco de ser visto, nem despertar suspeitas nos internos; ele esperou que estes dormissem e caminhou até o local combinado, depositando ali o bilhete.
Na noite seguinte, ele voltou ao local para buscar o bilhete que ela deveria ter deixado. Caminhou pela estradinha de terra o quilômetro que separava a clínica da igrejinha. O coração batia acelerado pela ansiedade de ler as palavras que ela lhe teria escrito. A ansiedade era tal que lhe parecia que a distância havia se multiplicado. Chegou ao local, espreitou a redondeza e, certificado de que não seria visto, levantou a viga com mãos trêmulas para pegar o bilhete. Só encontrou o que ele deixara na noite anterior. Sentiu um baque no peito, uma decepção enorme.
Tinha tanta certeza de encontrar o bilhete dela, que verificar que ela não pegara nem o que ele havia deixado, lhe provocara uma pasmaceira, uma tremenda confusão mensal. Ficou estático, abobado, sem atinar com o que pudera ter acontecido.
Quando se recuperou, ocorreu-lhe que ela poderia ter deixado o bilhete na outra extremidade da viga, que tinha quase dois metros. Verificou o outro lado e nada. Removeu a viga inteira e constatou que não havia mais nada, além do bilhete que ele deixara na noite anterior. Recolocou a viga no local e afastou-se, levando o bilhete.
Caminhou alguns metros e pensou em voltar e recolocar o bilhete no local combinado. Ela deveria ter tido alguma dificuldade de ir até lá e por isso não o pegara. Temia tanto que aquele relacionamento fosse descoberto. Que considerou a possibilidade de que alguém descobrisse o bilhete antes dela e, mesmo sendo anônimo e com letra disfarçada, temia que despertasse suspeitas.
Caminhou de volta para a clínica, levando os dois bilhetes: o primeiro e o que levara para deixar no lugar do que ela deveria ter deixado. Dominado por um sentimento muito ruim, ele tentava imaginar o que poderia ter acontecido. Entre as possibilidades, uma se destacava: ela teria caído em si e verificado que era absurdo relacionar-se com um homem como ele; que a atração fora momentânea e que não estava disposta a correr os riscos inerentes a um relacionamento que, seguramente, seria repudiado pela maioria das pessoas.
Chegou à clínica convencido de que ela havia desistido. Ele mesmo voltou a considerar que aquele relacionamento seria absurdo, sem cabimento.
Ela passava o dia na casa da tia, trabalhando. No final da tarde, voltava para a casa da avó. A distância entre as duas casas era de uns cem metros e a igrejinha ficava no caminho entre as duas.
No dia seguinte ao que combinaram a comunicação através de bilhetes; ao voltar para a casa da avó, ela foi verificar se ele não deixara algum. Sentiu decepção, mas compreendeu que ele não tivera, ainda, oportunidade de ir até lá.
Na tarde seguinte, voltou a verificar o local e não encontrou nada. Mais uma decepção.
No dia seguinte, a tia que estava separada do marido e que voltara a morar com a mãe; fora passar a tarde na casa da irmã em que a Mary estava trabalhando. No final da tarde, voltaram juntas, o que impediu a Mary de verificar o esconderijo de bilhetes.
Ao chegar em casa, a avó lhe pediu que preparasse o jantar porque ela não estava se sentindo bem. A tia dizia estar agoniada e falava sem parar. Não se afastava dela. Quando ela foi na horta buscar umas verduras, a tia foi atrás. Ela foi recolher a roupa no varal e a tia acompanhou-a. Em fim, a tia não a deixou a sós um único instante.
Depois do jantar, o avô resolveu contar estórias e ela não conseguia encontrar uma maneira de sair para verificar se havia algum bilhete esperando-a. Os avós costumavam dormir cedo e ela esperava ansiosa que isso acontecesse para poder sair. No entanto, naquela noite, o avô estava inspirado e emendava uma estória atrás da outra, dando a impressão de que iria passar a noite contando “causos”.
Ela alegou estar com sono, tomou banho e recolheu-se para seu quarto, esperando que os outros se recolhessem para poder sair sem ser vista.
O tempo parecia ter parado. Tinha a impressão de que estava há horas esperando que todos se recolhessem. Finalmente, quando a casa ficou em silêncio, esperou mais um pouco e saiu para o corredor. Quando se aproximava da porta da cozinha para sair, verificou que a tia se encontrava sentada junto ao fogão de lenha. Alegou que tinha ido tomar água, sorveu alguns goles e voltou para o quarto.
A noite já entrava pela madrugada quando a tia foi se deitar. Ela saiu do quarto, pé ante pé, saiu pela porta da cozinha e com a ansiedade dominando o medo do escuro, foi até a viga verificar se havia algum bilhete.
Não havia. Ele o havia retirado horas antes. Sentiu-se arrasada, considerou que ele se arrependera, que desistira dela, que o sentimento não era suficiente para correr os riscos inerentes. Passou o resto da noite em claro, sentindo-se desvalorizada, pequena, sem valor.
Ele não conseguia tira-la do pensamento. A razão lhe dizia que fora melhor assim. Que não teria sentido um relacionamento como aquele; que seria extremamente problemático, que os custos seriam muito maiores que os benefícios. No entanto, sentia o peito apertado, um vazio querendo ser preenchido, uma inquietação irritante.
Os internos vinham se comportando bem, exigindo pouco trabalho dele. Isso lhe deixava o pensamento mais livre para que a lembrança dela se estabelecesse.
Dois dias depois da noite em que recolhera o bilhete, ele sentia uma angústia muito grande e, no meio da manhã, resolveu podar os arbustos que compunham a cerca viva, na frente do sítio, junto à estrada. Trabalhava maquinalmente, com o pensamento ocupado por ela, quando notou que a perua que transportava as crianças para a escola, estacionou a poucos metros. O motorista desceu, aproximou-se e, meio sem jeito, entregou-lhe um envelope, dizendo que a Mary lhe pedira para entrega-lo.
Sentiu o coração acelerar de tal maneira que parecia que iria saltar pela boca. Agradeceu ao rapaz, que saiu como se tivesse se livrado de uma grande carga; meteu-se entre os arbustos, tirou o papel de dentro do envelope e leu-o ansiosamente.
Ela dizia que o tio levara a tia na cidade para consulta médica e que estava sozinha em casa. Que, se possível, ele fosse encontra-la pois precisava muito falar-lhe. Ele sentiu como se houvesse ganho o maior prêmio da maior loteria do mundo. Sentiu vontade de pular, dançar, gritar a plenos pulmões a felicidade que sentia.
Pensou em tomar banho e trocar de roupa, mas considerou que isso chamaria a atenção. Decidiu ir como estava e a pé, escondendo-se ao máximo, evitando ser visto. Seguiu por um atalho, evitando ao máximo a estrada. A ansiedade provocava-o a correr mas ele se continha e caminhou aparentando a maior normalidade. Tinha a impressão de que a distância havia triplicado, de que os passos não avançavam, que demoraria uma eternidade para chegar.
Quando transpôs a última curva e avistou a casa; a pulsação aumentou ainda mais e teve ímpetos de correr. Conteve-se a custo e venceu os últimos metros, assaltado pela possibilidade de que houvesse mais alguém na casa além dela, que tivesse chegado entre o momento que ela lhe mandara o bilhete e agora. O caminhar se tornou tenso, difícil.
Quando chegou na porteira, diminuiu o passo e sentiu que os nervos iriam estourar, temendo que ela não estivesse sozinha. Chegou a temer que nem ela estivesse, que algo a tivesse obrigado a sair.
Enquanto se acercava da casa, a porta se abriu e ela apareceu. Teve a impressão que havia chegado à porta do paraíso, que trombetas tocavam e que um anjo vinha recebe-lo.
Titubeou um instante, apressou o passo, entraram na casa, fecharam a porta e se colaram num abraço tão apertado que tinham a impressão de que seus corpos se fundiam. Permaneceram assim por longo tempo, temendo que ao afrouxar o abraço, o outro pudesse desaparecer.
Ele sentiu vontade de olhá-la, afrouxou o abraço, empurrou-a delicadamente e se afastou um pouco para vê-la, certificar-se de que era ela mesma, que não estava sonhando. Sentiu que era a visão mais linda que já tivera na vida. Os olhos dela o fitavam e demonstravam tanto amor que ele se sentiu um verdadeiro deus.
Voltaram a abraçar-se, colando as bocas num beijo fremente, como se pretendessem se engolir, guardando o outro dentro de si para ter certeza de que não fugiria.
Quando aquele impulso desesperado foi saciado, eles se recompuseram e ele, esforçando-se para opor-se a seu desejo, lembrou que não poderiam demorar e correr o risco de ser surpreendidos. Que os tios dela não deveriam demorar para voltar.
Ela parecia um bichinho assustado ao mesmo tempo que demonstrava a determinação de arriscar a própria vida para desfrutar aquele momento. Não conseguia falar, olhando-o com uma intensidade indiscritível. Ele se odiou por se obrigar a ser racional, forçar a interrupção daquela emoção, considerando que precisava cuidar para que aquele relacionamento pudesse ter continuidade, evitando ser surpreendidos, dando motivo para que impedissem que voltassem a se ver.
Esclareceram os porquês de a comunicação por bilhetes que haviam combinado, não dera certo. Ele disse que, a partir do dia seguinte, alegando que andava com problemas de digestão, sairia para uma caminhada após o almoço. Que passaria por ali, na ida e na volta, o que possibilitaria que se vissem e, se tivessem oportunidade, pudessem conversar um pouco, nem que só o suficiente para combinarem algo diferente. Que, na pior das hipóteses, usariam a viga na igrejinha para trocar bilhetes.
Abraçaram-se e se beijaram apertada e longamente, dispedindo-se.
Ele se afastou, voltando a cabeça de espaço em espaço, verificando que ela continuava na porta observando-o. Isso se repetiu várias vezes até que a curva da estrada impediu que voltassem a se ver.
Ele sentia tamanha felicidade e alegria, que tinha vontade de pular, virar cambalhotas, gritar ao mundo o que estava sentindo. Tudo lhe parecia lindo: a longa subida por onde caminhava, as pedras e buracos do caminho, a mata das margens, as nuvens no céu, em fim, era a própria felicidade que caminhava em direção à clínica.
Depois que ele sumiu na curva da estrada, ela permaneceu olhando para o ponto em que ele desaparecera. Fechou a porta e deixou-se cair no sofá.
O que sentia era tão intenso, que ela não conseguia definir. Só tinha uma certeza absoluta: não podia perdê-lo! Perdê-lo seria pior que perder a própria vida! Sentiu que caberia a ela conseguir que sua família aceitasse aquele relacionamento. Sentia isso com convicção, como algo inexorável. Não haveria alternativa, ou eles aceitavam ou a perderiam. Se não a perdessem para ele, a perderiam para a morte. Era uma decisão tranqüila, serena e irrefutável.
No final da tarde, depois da tia ter descansado da ida à cidade; ela aproveitou que estavam a sós e confidenciou que estava apaixonada. A tia não estranhou, ao contrário, disse já ter percebido que ela sentia alguma espécie de atração por ele. Que ele, realmente, era uma pessoa interessante, atraente, diferente. Que, no entanto, ela deveria tomar cuidado, Todos ali conheciam a disposição dele para ajudar quem precisasse, sua dedicação ao trabalho, sua inteligência. Em fim, ninguém sabia de nada que o desabonasse. Entretanto, era um homem reservado, dificilmente saia do sítio da clínica, não era dado, como a maioria dos homens da região, a freqüentar o bar e ficar jogando conversa fora.
Ele dizia estar separado da mulher há vários anos e, realmente, ele vivia sozinho ali. No entanto, ia todas as semanas para São Paulo e diziam que sempre a encontrava, que ela telefonava constantemente para ele. Portanto, não seria impossível que resolvessem retomar o casamento.
Mary alegou saber disso e confessou que a possibilidade de ele continuar tendo algum tipo de relacionamento com a ex-mulher, a incomodava. No entanto, o que sentia por ele era forte demais e sentia que o sentimento dele por ela não era menor. Que estava disposta a tudo para se relacionar com ele e desfrutar a aquele amor.
A tia confessou que, mesmo com a preocupação de não tem maior conhecimento sobre ele, acreditava que ela poderia ser feliz nesse relacionamento, mesmo considerando que ele não era nenhum exemplo de beleza e que era bem mais velho que ela. Disse temer que ela estivesse vivendo uma ilusão, afinal só tinha dezessete anos e, nessa fase, era muito fácil se iludir. No entanto, confiava nela, no seu senso de responsabilidade e na sua inteligência. Prontificou-se a ajuda-la e prometeu que falaria com os avós, que acreditava, não colocariam maiores obstáculos, uma vez que gostavam muito deles. Não acreditava que seria fácil, no entanto, considerava bastante viável a aceitação e se empenharia para consegui-la.
Ele não cabia em si de felicidade. Sentia-se leve, palpitante, vibrante; disposto, como se suas energias tivessem sido recarregadas. Tinha a impressão de estar sonhando e temia acordar e verificar que estava sozinho, como estivera até ali.
Nas reuniões com os internos, passou a ressaltar a vida com mais ênfase, a importância de eles se esforçarem para derrotar a dependência, habilitando-se para aproveitar o que a vida poderia lhes oferecer de bom. Se até ali, ressaltava o amor e a amizade como maiores valores da vida; passou a realçá-los, pintando-os com cores fortes e brilhantes.
Após o almoço, ele comunicou que iria caminhar um pouco para ajudar a digestão. Saiu para a estrada procurando aparentar normalidade de quem caminha com finalidades terapêuticas. O coração, no entanto, sentia a aceleração causada pela ansiedade. As pernas teimavam em acelerar o passo, mas ele as controlava, tentando demonstrar um caminhar tranqüilo.
Quando se aproximava da casa da tia dela, seu coração batia tão forte que ele tinha a impressão de ouvir-lhe as pancadas. Os olhos procuravam por ela, mas tanto a estrada, como a porteira e o caminho que dava acesso à casa, estavam vazios. Olhava para a casa, que ficava num plano mais elevado que a estrada e não via ninguém. Diminuiu os passos enquanto a ansiedade aumentava, quase chegando a parar. Nada! Ela não aparecia. Continuou a caminhar o mais lento que pôde, passou pela porteira e seguiu pela estrada por mais uns duzentos metros. Parou às margens de um riacho que cortava a estrada e sentiu a decepção que lhe apertava o peito. Que teria acontecido?
Começou a voltar e a esperança reapareceu, com a ansiedade voltando a acelerar as batidas do coração. Caminhou lentamente, chegou à porteira e olhou de soslaio para o caminho que levava à casa. Nada! Continuou caminhando, sem atrever a olhar para trás e verificar se havia alguém na casa. Voltou a sentir o aperto no peito, quando ouviu um ruído se aproximando. Ela montava uma bicicleta e parou a seu lado. Não encontravam palavras para dizer. Ele sussurrou a saudade que estava sentindo e o medo de que ela pudesse não aparecer. Ela disse da ansiedade que sentira durante toda a manhã, do desespero que a dominara quando o tio se sentara para almoçar no momento em ele aparecera na curva da estrada. Que usara a necessidade de ir buscar leite na casa da avó para sair sem despertar suspeitas para encontrá-lo. Que a tia prometera ajudá-la a conseguir que os avós consentissem no relacionamento.
Ela disse que precisava ir e pediu-lhe que voltasse no dia seguinte, no mesmo horário. Olharam-se profundamente, ela montou na bicicleta e pedalou em direção da casa dos avós. Ele retomou a caminhada, observando-a como quem admira a maior preciosidade, até que ela desapareceu na curva da estrada.
Ao passar pela porteira do sítio em que os avós dela moravam, viu-a na varanda da casa, observando-o. Continuou caminhando, feliz, leve, inundado pela certeza do amor que os envolvia e acreditando que a realização daquele relacionamento era questão de tempo.
No final daquela tarde, quando Mary voltou para casa, a tia foi com ela. A avó preparava o jantar, enquanto o avô pitava um cigarro de palha, sentado ao lado do fogão de lenha.
A tia sentou-se em uma cadeira junto à mesa e, depois de um pouco de conversa trivial, comunicou aos pais que a sobrinha pretendia namorar com o Diego. Mary, que estava junto ao corredor, não esperava que a tia abordasse o assunto naquele momento. Entrou no banheiro e trancou-se lá dentro.
A avó deu um sorriso de descrédito, dizendo: “Vê lá se um homem como aquele, vai querer namorar uma menina que nem ela!. Essa menina sonha demais!”
O avô deu uma pitada no cigarro de palha, expeliu a fumaça e ficou observando-a subir. Finalmente disse: “Até que seria bom. Ele é um homem muito bom e pode ensinar muita coisa pra ela.”
Mary, trancada no banheiro, ouvia tudo. Exultou com o parecer do avô e pensou o quanto a avó desconhecia a realidade, duvidando que ele pudesse estar apaixonado por ela. Sentiu-se aliviada embora não encontrasse coragem para sair e enfrentar os avós. Finalmente considerou que não poderia permanecer indefinidamente ali e saiu.
A tia dissera à avó, saber que o Diego também estava interessada na sobrinha, mas ela continuou duvidando.
Mary entrou na cozinha, de cabeça baixa, sem coragem de encarar os avós. Olhou de soslaio para a tia que lhe sorriu, levantando o polegar da mão direita, indicando que o problema estava resolvido.
A avó continuou achando que aquilo não passava de fantasia da menina. No entanto, estava claro que gostaria que fosse verdade.
Logo depois chegaram o pai de Mary e o irmão dele. Tanto um como o outro, não consideraram nenhum absurdo que aquele relacionamento acontecesse. O pai, que havia parado de beber há poucos anos, chamou a atenção dela para a mesma coisa que a tia já houvera alertado: a possibilidade de ele reatar o casamento.
Ela não cabia em si de felicidade. O fato de eles não colocarem obstáculos ao relacionamento, evitava que ela tivesse que romper com eles, uma vez que estava decidida a assumi-lo, independente da posição deles. Não via a hora de poder contar a ele a novidade.
No dia seguinte, quando ele passou na sua caminhada, ela convidou-o para que conversassem na varanda da casa da tia. Contou-lhe o que acontecera no dia anterior. Ele recebeu a notícia com grande surpresa. Não considerara a possibilidade de que os familiares dela pudessem aceitar com tanta facilidade aquele relacionamento. Afinal, o que importava isso? O importante é que poderiam namorar e conversar, o que lhes permitiria conhecer-se melhor e avaliar se aquele amor teria futuro ou não.
Estavam tão felizes que não perceberam a aproximação do tio dela. Ele cumprimentou Diego e colocou sua casa a disposição dele para quando quisesse conversar com a Mary. Disse-lhes que voltaria a trabalhar, despediu-se e foi embora.
Diego sentiu como se estivesse participando de um filme de ficção. Estivera se preparando para enfrentar uma verdadeira guerra e, no entanto, ao invés de agressões recebia boas vindas.
Pouco tempo depois, a tia de Mary abortou. Depois da convalescença, já não precisava da ajuda que ela lhe prestava.
Diego convidou-a para trabalhar com ele na clínica. Ela confessou recear não ter capacidade para desempenhar esse trabalho. Ele encorajou-a, dizendo que fariam uma experiência, mas que acreditava que ela se sairia bem.
Os internos já a conheciam e sabiam que estava namorando com Diego. Ele comunicou-lhes que ela passaria a trabalhar ali, destacou a excepcionalidade de uma mulher trabalhar em uma clínica para dependentes de drogas onde só havia indivíduos do sexo masculino e pediu-lhes que a tratassem com o respeito devido a uma mulher e, principalmente, a uma profissional. Destacou que ela estaria ali como profissional e não como sua namorada.
Diego tinha dados suficientes que demonstravam o excepcional potencial dela, no entanto, verificou com agradável surpresa que ela superava as expectativas dele.
Era um relacionamento de causar inveja. Os dois apaixonados como ninguém, demonstravam, além disso, um carinho e uma amizade fora do comum. Viviam um para o outro, se admirando e respeitando mutuamente, curtindo as qualidades que tinham, causando inveja a muita gente.
Era um relacionamento visto com restrições por muitos, se não, pela maioria. Achavam que ele era um papa-anjo e que ela era uma aproveitadora. Que ele só estava interessado em sua beleza, sua juventude; enquanto ela estava interessada no dinheiro dele. Ledo engano! Ele era quase tão pobre quanto ela e sua família.
Ele era estrangeiro, nascera na Espanha, de onde viera com um ano de idade. Ela lembrou-se do homem que, quando tinha doze anos, lera sua mão e lhe dissera que o homem de sua vida era um estrangeiro e que estava, na época, muito longe, mas que viria até ela. Conversaram muito sobre isso e verificaram que o homem havia acertado várias de suas previsões. Ele, que era agnóstico, ficou impressionado com o que ela lhe contava, que além da leitura de sua mão que o homem fizera e, parecia ter acertado bastante, ela tinha uma espécie de premonições, que lhe contava e dava detalhes que o deixavam cada vez mais impressionado.
Eles notaram uma coisa estranha: já fazia mais de um ano que ele morava ali, ela, durante esse tempo, estivera morando ali também por várias vezes e, no entanto, nunca tinham se encontrado antes. Numa das conversas, comentaram sobre o casamento da filha de um tio da mãe dela, que morava num sítio que ficava entre a clínica e o sítio em que os avós dela moravam. Esse casamento acontecera bem antes de ele ir morar lá, mas ele ia muito ali, uma vez que o sítio onde funcionava a clínica era de um amigo dele e ele ia lá constantemente. Mesmo que os dois estivessem muitas vezes muito próximos, nunca se tinham visto, nem no casamento em que os dois estiveram. Não tinham a menor lembrança de um já ter visto o outro.
A clínica, depois de algum tempo, faliu. Ele continuou morando lá por mais um tempo, tentando fazer outras coisas, mas verificou que não conseguia nada que desse resultado financeiro suficiente. Resolveu com ela que deveriam ir embora, procurando algo que lhes propiciasse a sobrevivência e futuro. Uma irmã dele, que tinha um sítio, ofereceu-o para eles morarem em outra cidade. Ela concordou em ir com ele e passariam a viver maritalmente. Ela fez a mala (tinha pouca coisa) e só comunicou aos avós que iria embora com ele, quando lhe perguntaram por que fazia a mala. Novamente se manifestava sua vontade, independente do que ela causaria nos outros. Fez isso para não ter que dar maiores explicações nem se sub-meter a discussões.
Foram morar nesse sítio onde fabricavam queijos, doces, compotas, etc. Uma cunhada da irmã dele também morava no mesmo sítio, em outra casa. Ela ficou sócia deles, ajudando na fabricação e, principalmente nas vendas na região, onde conhecia muita gente. As duas saiam com o carro deles, a menina dirigindo, sem habilitação.
Ela demonstrou uma capacidade de trabalho e dedicação impressionantes. Já demonstrara isso antes, mas agora, essa capacidade se multiplicava.
Viviam com dificuldade financeira, que era compensada pelo desfrute de um amor apaixonado, escaldante, terno, carinhoso, que lhes permitia enfrentar qualquer dificuldade sem maiores problemas. A conversa era uma constante. Ela o admirava por seu conhecimento, inteligência, sensibilidade e espírito de aventura. Ele a admirava pelos mesmos motivos, embora ela não tivesse um conhecimento mais amplo. Eram iguais em tudo, a única diferença eram o sexo e a idade. Ele costumava dizer que ela era ele de saias, mais nova e bonita.
Ele era piloto de vôo livre, voando de paraglider. Essa característica era significativa na imagem que as pessoas tinham dele, como aventureiro. Ele a levara num vôo quando ainda morava no sítio da clínica.
Surgiu a oportunidade de irem morar e trabalhar em outra cidade bem maior. O cunhado dele tinha uma loja nessa cidade e lhe dissera que havia um mercado muito bom a ser explorado na área da construção civil. Que eles poderiam ficar na casa dele e tentar desenvolver esse negócio. Não tiveram dúvida, mudaram-se pra lá e começaram a trabalhar para viabilizar o negócio. Trabalharam muito e, logo ela começou a ter problemas com a cunhada, que achava que ela era um impecilho para que ele voltasse pra antiga esposa. Era uma perseguição velada, por traz dele, uma vez que na sua frente a tratava muito bem. Morar de favor não é a coisa mais agradável, principalmente quando alguém procura colocar problemas pra desestabilizar a harmonia. Os dois trabalhavam bastante e, nos finais de semana, ele começou a ensina-la a voar, juntamente com um rapaz que conheceram lá e que ficara muito amigo deles. Depois de um tempo de treinamentos, finalmente ela decolou sozinha para o primeiro vôo. Foi uma experiência inesquecível.
Esse amigo a quem ele ensinou a voar, acabou apaixonando-se por ela. Respeito e amizade eram valores muito fortes nele, o que o deixava em situação extremamente difícil diante da situação. Sentia que traia o amigo, mesmo que só em pensamento, mas era atormentado pela paixão. Depois de muito relutar, declarou-se a ela, dizendo do seu dilema, do quanto se sentia mal, mas que a paixão era muito mais forte. Ela, com muito tato, disse-lhe que amava demais o marido o que a impedia, até, de considerar qualquer possibilidade de outro relacionamento. Que compreendia sua situação e lamentava que aquilo tivesse acontecido, que tinha muito carinho por ele como amigo e que não gostaria de perdê-lo. No entanto, ele teria que controlar sua emoção por ela até conseguir elimina-la. Era uma situação muito difícil: três pessoas envolvidas numa amizade muito grande e respeitosa, ameaçada por uma emoção, que não depende de ninguém, difícil de controlar e que tornava a vida do rapaz num verdadeiro inferno. Ele conversou com ela várias vezes dizendo de sua situação e ela lhe recomendava paciência e perseverança para livrar-se daquele sentimento, que não tinha qualquer possibilidade de ser satisfeito. Ele sempre se manteve dígno, confessou seu amor por ultrapassar sua capacidade de resistir a ele, mas nunca forçou absolutamente nada e vivia se lamentando por saber que, se conseguisse realizar seu desejo, um grande amigo, a quem muito prezava, sofreria as conseqüências. Era um drama terrível, que o consumia até as entranhas. Tudo isso era agravado pelo fato de ele estar casado, pela segunda vez, e que a esposa estava grávida. É daquelas coisas que não se deseja nem para o pior inimigo.
Ela comentava com Diego tudo o que acontecia e as conversas que mantinha com o amigo. Eles não tinham segredos entre si.
Eles tentaram realizar o negócio a que haviam se dedicado ali, com afinco e muito trabalho mas, com o passar do tempo, as dificuldades foram se tornando insuportáveis, principalmente a perseguição que a cunhada movia contra ela.
No final do ano, foram passá-lo com as respectivas famílias. Ele deixou-a na casa da mãe e seguiu para a casa dos seus pais, onde passou o natal. Na véspera do ano novo, foi juntar-se a ela na casa dos avós paternos, de onde voltariam para o a cidade onde moravam e trabalhavam.
No dia de natal, ela foi com o pessoal em um barzinho, bebeu, dançou e jogava truco, quando teve um desmaio. Quando voltou a si, levaram-na para casa mas, como se sentisse muito mal, com formigamentos nos braços e com pouca consciência, levaram-na ao hospital. Disseram-lhe que falava palavras desconexas e que, na maioria das vezes, quando lhe perguntavam algo, só respondia: "bom". Sua saúde voltou ao normal, no dia seguinte.
Quando se encontraram na véspera de ano novo, na casa dos avós paternos dela, ela, que passara uma semana com a família, demonstrou vontade de ficar mais algum tempo por ali, pra descansar da pressão que vinha sofrendo.. Alegou que estava precisando de um tempo, que a carga estava sendo muito grande e estava difícil de suportar. Ele argumentou que era verdade, que sentia e sabia o quanto era duro pra ela enfrentar aquela situação mas que estavam tentando realizar um trabalho que poderia proporcionar-lhes um futuro promissor e que os livraria do maior problema que era a dependência da irmã dele, que não evitava esforços para separa-los. Ela conversou com a irmã o cunhado e o pai, titubeou mas acabou cedendo e voltou com ele. Não fazia isso pelo negócio, com o qual já estava desanimada, mas pelo amor, pela amizade, pelo que ele representava para ela. Considerou que o companheirismo dele era mais importante que as dificuldades que enfrentava e que, ficando junto aos parentes, não desfrutaria desse companheirismo, que seria um custo muito grande para o benefício que isso poderia propiciar.
Depois de mais algum tempo, como o negócio não progredisse e a situação de convivência com a cunhada piorasse, resolveram que deveriam ir embora. Como não tivessem nenhum trabalho em vista, resolveram que ela ficaria na casa da irmã, na cidade que ela morava, enquanto ele iria pra casa dos pais tentar algum trabalho. Isso lhes daria um tempo de separação para que pudessem avaliar a própria relação. Enquanto isso, ele procuraria trabalho para recomeçarem do zero, novamente.
Eles se falavam quase todo dia. Ele conseguiu trabalho numa empresa pra distribuir folhetos de propaganda. Para tanto, vendeu o carro que tinha e comprou uma perua, arrumou uma equipe de meninos que faziam a distribuição e dedicou-se ao trabalho. Continaram se falando por telefone e ele a visitava sempre que podia. Ela arranjou um emprego numa oficina de costura e assim se passaram aproximadamente dois meses, até que, com a situação do trabalho dele estabilizada, resolveram voltar a conviver e ela veio morar com ele novamente, numa casinha muito simples que alugaram.
Ela foi trabalhar com ele. Na cidade grande ela se sentia meio desorientada, mas a companhia mútua lhes permitia superar toda e qualquer dificuldade. Passado um tempo, surgiu a oportunidade de ele realizar outro trabalho e resolveram que ela continuaria com o de distribuir folhetos. Arrumaram um motorista e ela comandava a equipe. Quando tinha problemas na rua, chamava-o e ele a socorria. Era um trabalho duro, em que ela saia de madrugada para juntar a equipe e ele, optara pelo turno da noite, como única maneira de terem um mínimo de tempo para estar juntos, que acontecia na parte da tarde, quando ela voltava do trabalho e ele acordava do descanso depois de trabalhar a noite inteira. Ela ainda não tinha habilitação e ia sozinha com a perua buscar os elementos da equipe, inclusive o motorista.
Numa madrugada foi abordada pela polícia e teve muita dificuldade para conseguir que a liberassem sem apreensão do veículo, nem multas.
Depois de um tempo, surgiu a oportunidade de ela trabalhar na mesma empresa que ele. Deixaram o trabalho de distribuição e ela foi ser sua companheira de trabalho. Ele mudou de turno para se adaptar ao dela e voltaram a viver quase que o tempo todo na companhia um do outro.
Os pais dele moravam, sózinhos, numa casa muito grande e começaram a pedir-lhes que fossem morar lá. Lhes fariam companhia e se livrariam de ter que pagar aluguel. Ele conhecendo o gênio da mãe, que não era nada fácil, resistiu. Seu pai, no entanto, insistiu muito junto a ela, até que conseguiu seu intento. Foram tempos muito ruins para ela, principalmente porque perdeu o emprego e teve que ficar em casa, agüentando a sogra em tempo integral. Foram tempos muito difíceis para ela, mas carregou o fardo com galhardia, sem se queixar, só comentando com ele o que acontecia, o que o fazia saber do quanto ela sofria e da sua capacidade de suportar dificuldades. Chegaram a um ponto em que a situação se tornou insustentável e dicidiram que deveriam mudar novamente. Ela já não agüentava mais viver na cidade grande, sentindo-se oprimida e a beira de um colápso. Resolveram largar tudo e tentar a vida na roça, novamente. Era uma coisa que ela sempre abnegara, sonhara desde criança em sair dali, fugir daquela vida, mas agora, depois de tantas experiências, reconsiderara sua posição e, pelo menos por algum tempo, acreditava que aquilo seria o melhor. Ele considerou a possibilidade de viverem como missionários, ensinando o que sabiam, a experiência, a observação que faziam do mundo, os problemas que detectaram no modo de vida daquela gente, em fim, poderiam colaborar com eles e receber ajuda para a sobrevivência, até que alguma oportunidade surgisse. Montaram um projeto e se dispuseram a tentar cumpri-lo.
Tinham vivido tão intensamente esse tempo em que estavam juntos, que em meses viviam o equivalente a muitos anos, tal a quantidade de experiências vividas, ao que se somava o que conversavam analisando situações, fatos, comportamentos, próprios e alheios, numa intensidade muito grande. A conversa para eles funcionava como a leitura, o cinema, o teatro, em fim, as artes, funcionam para seus usuários: como um multiplicador de vida, pela oportunidade de tomar contato com coisas que não fizeram mas das quais tomaram conhecimento e sentiram como se as tivessem vivido e feito. A intensidade era tal que, eles próprios se perdiam no tempo, acreditando que já fazia anos que algo tinha acontecido, quando, na verdade, tinham passado poucos meses. Aquilo não era uma multiplicação de vida, era uma verdadeira exponenciação!
Quando se aproximava o dia da partida para a roça, ele recebeu um telefonema de um amigo, que o convidava para um desafio: tentar solucionar os problemas que a empresa que tinha em sociedade com quatro irmãos, estava passando. Era uma tentativa, embora ele acreditasse que muito pouco poderia ser feito. Mas, se ele quisesse experimentar, o convite estava feito para uma tentativa.
Ele conversou com ela, expôs-lhe o convite recebido, acreditando que ela iria vibrar com aquela possibilidade pois a empresa ficava em uma capital do centro-oeste, grande o suficiente para propiciar coisas boas e suficientemente pequena para possibilitar uma boa qualidade de vida. Ela se referia a uma possibilidade assim como a ideal. No entanto, ao ser comunicada da possibilidade, rejeitou-a de imediato, como se estivesse diante de algo muito ruim. Ele estranhou. O que motivara aquela reação? Não compreendeu mas respeitou sua posição. Conversando sobre aquilo, concluiram que era uma espécie de premonição, uma vez que não havia motivos aparentes para o que ela sentia a respeito do assunto, mas sentia uma grande rejeição de ir para esse lugar. Depois de conversar bastante a respeito, decidiram que ele iria para fazer a experiência, numa previsão de vinte dias, uma vez que a empresa entraria em férias coletivas a partir desse tempo, e que ela iria para casa dos parentes na roça. onde o esperaria. Deixaram para decidir o que fazer após a experiência.
Os dois partiram juntos, ela no carro em direção à roça e ele de moto para se encontrar com uma carreta da empresa que o levaria até ela.
A empresa ficava na rodovia de acesso à cidade e muito próxima dela. Estava instalada em uma área muito grande que além da indústria, comportava um campo de futebol, um grande pasto atrás dele e. nos fundos a casa do caseiro, dos pais dos donos da empresa e uma outra em que morava um encarregado da indústria. Foi nessa última casa que ele foi alojado, enquanto durasse o tempo da experiência.
Ela ligava para ele constantemente e trocavam informações sobre o que ia acontecendo. Ele se dedicou ao trabalho de observar e obter informações a respeito do funcionamento da empresa e não demorou a detectar que o problema estava no comportamento dos sócios, que não conseguiam se entender. O tempo passava e nenhum dos sócios o procurava para saber de como andavam suas observações. O sócio, que era seu amigo, ficava na Cidade de onde viera que era onde funcionava o departamento comercial da empresa. Chegaram as férias coletivas e, embora ele tivesse procurado informar o que observara, não conseguiu que o ouvissem. Sempre lhe diziam para deixar para depois. As férias chegaram e eles lhe pediram que voltasse ao final delas para que pudessem resolver alguma coisa. Pegou carona num caminhão da empresa que levaria mercadorias para cidade de onde viera, de onde iria seguir viagem pra se encontrar com ela.
Ainda não haviam saído da periferia da cidade, quando circulavam por um anél viário, o caminhão em que ele viajava bateu em um outro e, os dois foram se chocar com um carro que estava no acostamento e alguns ciclistas que esperavam para cruzar a rodovia. Ele e o motoristas saíram ilesos por obra do mistério que nos envolve pois, principalmente do lado em que ele estava, o estrago fora tão grande que ninguém acreditaria que não tivesse sofrido graves conseqüências.
Depois do transtorno do acidente, naquela mesma madrugada, partiu em outro caminhão que substituiu o primeiro, chegando até a casa de seus pais, de onde, no dia seguinte, seguiu viagem e foi se encontrar com ela.
No natal ele viajou para passá-lo com seus familiares. Voltou no dia seguinte e passaram juntos até o dia de sua volta. Combinaram que ele, dependendo do resultado, providenciaria casa para que se instalassem e viria busca-la, uma vez que ela estava mais receptiva à idéia de ir para lá.
Ele continuou seu trabalho e, poucos dias depois, como fazia constantemente, ela lhe telefonou. Disse-lhe que estivera numa festa de padroeiro perto da casa de sua mãe, que conhecera um rapaz, que ficara com ele e que estava muito confusa. Que precisaria de um tempo pra colocar as coisas no lugar e resolver o que faria. Ele tomou um choque de alta tensão. Foi terrível! Mas controlou-se e pediu-lhe que tivesse calma, que pensasse muito, com o máximo de racionalidade, pesando com cuidado os dados disponíveis, com serenidade, para tentar decidir pelo melhor. Realçou que o importante era o que fosse melhor para ela. Disse-lhe que estava sofrendo e que sabia do que teria que enfrentar para viver sem ela, mas como já haviam analisado inúmeras vezes, essa possibilidade sempre fôra considerada e que, se acontecesse, eles procurariam entender que tudo é eterno enquanto dure. Pediu-lhe para continuar comunicando-se com ele, para que pudessem conversar, trocar opiniões e ele tentaria ajudá-la no que pudesse. Que acima de qualquer coisa, deveriam manter a amizade, de cuja importância tinham plena consciência. Despediram-se e ele ficou como se o mundo tivesse caído sobre si!
Depois de alguns dias, como ela não ligasse, ele resolveu tentar falar com ela. Estava num estado lamentável, não dormia nem comia, dedicava todas as horas de folga a escrever, tentando entender o que acontecia mas, a falta de informações formavam a mais carregadas nuvens em sua cabeça. Onde ela estava, a comunicação era difícil e só dois tios dela tinham telefone celular e eles moravam a boa distância da casa da mãe dela. Ligou para um deles e pediu-lhe que pedisse a ela para ligar-lhe. Esperou o retorno da ligação com a ansiedade fazendo-o sentir que explodiria, fazendo de cada minuto uma eternidade!
O telefone tocou e ele sentiu o coração disparar, querendo sair do peito!
Ela lhe disse que, quando da ligação anterior, o fato só era conhecido por ela e o rapaz, mas que, agora, já se tornara público, que não tinha alternativa e que resolvera ficar com ele. Se da primeira vez o mundo desabara em sua cabeça, agora parecia que outros mundos se juntavam ao primeiro, aumentando o que já lhe parecia insuportável. Ela falou com calma como quem tivesse optado pela compra de um entre vários sapatos experimentados. No estado em que estava, ele nem percebeu isso. Disse-lhe que compreendia, que se era o melhor para ela, desejava-lhe toda a felicidade, que se dispunha a ajudar no que pudesse e implorou que continuassem como amigos, que lhe ligasse para conversar, ajudar-se e não perder contato. Ela concordou maquinalmente e se despediram. Ele que pensara já ter chorado tudo o que podia, verificou que havia um mar de lágrimas para serem derramadas e chorou copiosamente no quintal da casa, sob árvores e um céu repleto de estrelas que não se incomodavam com sua dor.
ELA
Era dia de festa na capela, 26 de janeiro, Festa de São Sebastião.
Ela chegou trazendo a mãe e os irmãos, estacionou o carro e se dirigiram para a igreja onde já começava a missa. A igreja estava cheia, afinal não é todo dia que tem festa naquelas paragens. Como não houvesse lugar para sentar, encostou-se numa parede e olhou o altar, todo enfeitado.
Não estava alegre, algo a aborrecia, fixou-se na cerimônia, prestando atenção no ritual. Rezou, cantou, em fim, portou-se como uma verdadeira devota. Achou interessante a música, era música sertaneja adaptada ao ritual, cantaram asa branca entre outras.
Estava melancólica, não atinava exatamente porquê. era a melancolia que a acompanhava há alguns dias. Longe do marido há quase um mês, que fôra trabalhar em Campo Grande e que pretendia que ela o acompanhasse. Era uma questão de dias, ele ficara de avisa-la quando viria busca-la. Não sentia nenhuma animação para ir para tão longe, algo lhe dizia, desde o começo, que aquele lugar reservava alguma coisa ruim, No momento em que o marido lhe dissera que recebera uma proposta para ir trabalhar lá, sentiu uma espécie de arrepio, como se algo lhe avisasse que não daria certo, uma premonição ruim. Há mais ou menos um mês antes dessa proposta, haviam decidido que se mudariam para a região onde agora ela se encontrava; estavam cansados das dificuldades que vinham vivendo: trabalho difícil para ele, dificuldade em encontrar trabalho para ela, morando na casa dos pais dele, enfrentando a insuportável sogra, sem amigos, sem lazer, em fim, ali, só tinham um ao outro; o resto era só problemas.
Haviam decidido que se mudariam para a roça e tentariam implantar um projeto comunitário que haviam feito há algum tempo. Seriam missionários, viveriam a simplicidade, tentando ajudar as pessoas e buscando conhecimento para, no futuro, aplica-lo na confecção de um livro e na divulgação do resultado do trabalho.
A proposta veio mudar os planos na reta final, na véspera da mudança. Decidiram que ele iria fazer a experiência enquanto ela iria para a casa de parentes, no lugar onde iriam morar, na roça, onde esperaria o resultado da experiência. Enquanto isso, tentaria experimentar colocar em prática algo do que tinham projetado.
No final do ano, na semana do natal, vinte dias depois de terem se afastado, ele voltou e passaram o natal e fim de ano juntos.
Ele voltara para a experiência, que ainda não terminara e ela continuou ali. Combinaram que em pouco tempo estariam juntos novamente e dariam continuidade àquele relacionamento maravilhoso que viveram nos últimos cinco anos.
Agora, vinte e poucos dias depois, lá estava ela, naquela festa sozinha e melancólica, confusa, não sabendo exatamente o que queria, meio perdida num emaranhado de pensamentos e sensações.
Dois ou três dias depois de seu amor ter ido embora, ela foi para a casa de sua mãe. Não demorou para que a mãe e a avó começassem a argumentar em favor da sua permanência entre eles. Alegavam que ela não deveria ir para tão longe, que era perigoso, que ali, entre os familiares, estaria protegida e, como era muito bonita, não lhe faltariam pretendentes para casar, uma vez que ela não era casada oficialmente. O coro para que ficasse e abandonasse o velho companheiro foi engrossado por tios, tias e conhecidos. Um tio dela chegou a dizer que seu companheiro não duraria muito pois fumava demais e iria deixa-la viuva logo logo. Querendo reforçar o argumento, disse-lhe que se ele não morresse logo ela iria servir-lhe de bengala pois ele não se agüentaria sozinho, referindo-se ao fato de ele ser trinta e dois anos mais velho que ela, Sua avó recordou o fato de ela ter levado a ex-mulher dele numa visita que fizera a eles, achando que aquilo fora um verdadeiro absurdo, que onde já se viu mulher e ex-mulher sendo amigas, viajando juntas sozinhas. Lembrou que a ex-mulher falava o tempo todo que o marido ainda era dela pois não haviam se divorciado. A argumentação a favor da separação foi ganhando volume e as pessoas aproveitavam qualquer indício para embasar sua opinião a favor da separação e a permanência dela ali. Alegavam que ele não tinha responsabilidade por ter permitido que ela viajasse sozinha de carro, totalmente desprotegida, a mercê dos perigos da estrada, que isso não era atitude de um marido que se preocupasse com a segurança da mulher.
Não acreditaram no que ela dizia, que tivera um problema no estômago que lhe provocava vômitos após as refeições e que, por isso, havia emagrecido bastante. Eles alegavam que ela estava escondendo a verdade, que seu emagrecimento devia-se à fome que passara junto a ele, que além de priva-la de tudo ainda impedia que tivesse uma alimentação razoável. O tio, que dissera que seu amor não duraria muito, que era muito velho; argumentou que não lhe deixaria nenhuma aposentadoria que lhe garantisse o futuro. Achava que isso era fundamental para o futuro de uma mulher.
Ela não concordava com muito do que alegavam mas toda aquela pressão fê-la valorizar o sofrimento que aquele relacionamento lhe causara, não por ele mas pelos problemas criados pela família dele. Lembrou-se que os últimos tempos foram muito difíceis e sofridos, que não agüentaria viver nem mais um mês naquela casa onde a mãe dele não perdia oportunidade de atormenta-la pelos motivos mais fúteis que se possa imaginar. Não bastasse tudo que tinha feito enquanto conviveram na mesma casa, depois da partida dela, numa reunião familiar fez uma encena;cão que impressionou quem ouviu seu relato de que era maltratada pela nora, que chegara a agredi-la, que preparava refeições exageradamente temperadas para prejudica-la uma vez que sabia que ela, por ser velha e debilitada, precisava de uma alimentação leve e balanceada. Que o objetivo da nora era minar mais ainda sua saúde debilitada. Ficara sabendo dessa encenação numa visita que fizera com seu amor à casa de sua ex-mulher, onde também moravam suas filhas. Ele ficara revoltado e argumentou em favor de que, aquilo, fôra uma monstruosidade de alguém que tinha a personalidade contaminada pela maldade e prepotência, que não media conseqüências para mostrar-se humilde e sacrificada.
A carência afetiva pela distância do seu amor, a pressão dos familiares, as recordações das situações ruins vividas, foram fazendo crescer dentro dela uma dúvida sobre se aquele relacionamento valeria a pena continuar a ser vivido.
Ela foi trazida de volta à realidade pela movimentação das pessoas que se dirigiam para o exterior da igrejinha, pois a missa acabara. Lá fora verificou que começava a garoar e foi abrigar-se sob o beiral de uma casa do outro lado da rua, ao lado de um bar. Quedou-se ali curtindo a melancolia e o desassocego mental.
O irmãozinho de dois anos veio tira-la da viagem mental que fazia. Queria ficar com ela. Ela comprou-lhe um refrigerante e foram sentar-se num banco próximo da igreja.
Não demorou e o pai dele veio juntar-se a eles. Queria conversar com ela, dizer que pretendia voltar para a mãe dela, de quem estava separado há algum tempo. Pretendia reatar o relacionamento mais uma vez, a quarta, quinta, sexta, sei lá. Conversavam sobre os prós e contras do reatamento quando um irmão dele chegou para avisa-lo sobre um trabalho que teria que fazer na início da semana. Deu o recado e ficou por ali brincando com o sobrinho, que por sinal, não gostava nem um pouco dele e se irritava com suas brincadeiras, O pai do menino afastou-se com ele e ela ficou na companhia do irmão dele.
Ele era um homem de trinta anos, simples, como todos ali, vivia num lugarejo que ficava entre o local que estavam e a casa da mãe dela. Trabalhava, como a maioria, na roça, na lavoura de batatas, no apanho de pinhão, na execução de cercas, no roçado de pastos, em fim, o que aparecesse.
Ele perguntou pelo marido dela. Ela disse que estava em Mato Grosso. Ele perguntou se ela também iria pra lá e ela disse que, provavelmente, na próxima semana. Ele falou que sofria a desilusão de um amor. Que namorara há seis anos e meio com uma moça e terminou por saber que ela o traia há aproximadamente três anos. Estava magoado e alegava não compreender o fato de ela alegar que ainda o amava. -"Como alguém pode amar alguém a quem trai?"
Ela argumentou que isso poderia ser fruto de imaturidade, de amor duplo ou simples atração física pelo outro; o que não invalidaria o amor que tivesse por ele. Ele confessou ser muito ciumento, que brigavam muito por isso, principalmente quando ela exagerava na bebida. Amava-a mas não poderia suportar continuar um relacionamento em que teria que dividi-la com outro. Perguntou se o marido dela era ciumento. Ela disse que não, que não sofriam desse mal, que confiavam muito um no outro e que, portanto, não tinham motivo para sofrer com esse tipo de problema. Ela argumentou que: se ele a amava deveria lutar para reatar o relacionamento, buscando corrigir as distorções acontecidas e construindo o caminho para um futuro feliz.
Ele disse que não poderia perdoar o que ela fizera, enganara-o e por muito tempo.
Ela perguntou como ele havia descoberto a traição. Ele disse que já desconfiava há algum tempo, pois ela, em vários finais de semana, que era quando se encontravam, lhe pedia para não ir procurá-la porque teria que trabalhar. Um dia, um amigo o preveniu que deveria averiguar o que estava acontecendo, pois ela o estaria traindo. Disse-lhe que fosse na pousada, em que ela trabalhava, no próximo final de semana, que, provavelmente, a flagraria com o amante. No sábado, por volta das treze horas, ele chegou na pousada e verificou que o que o amigo dissera era verdade. Ela perguntou se ele os havia visto. Ele disse que não. Ela perguntou como ele tivera certeza de que ela estava com o amante. Ele disse que a motocicleta do amante estava na pousada. Ela argumentou que o homem poderia estar lá com qualquer outra pessoa, Ele disse que não, que perguntara por ela e lhe disseram que não estava, Fôra até um bar próximo, que era de um tio dela, tomara uma cerveja e comentara com o vendeiro sua desconfiança, o que acabara de observar e a informação de que ela não estaria. O tio dela confirmou que a traição estava acontecendo e que os dois estariam juntos, na pousada, nesse momento.
Ela perguntou-lhe se ele entrara para certificar-se. Ele disse que não, que as evidências eram mais que suficientes, tornando desnecessária a busca de mais informações. Ele apresentava os olhos marejados por lágrimas e ela, percebendo seu estado emocional, evitou fazer mais perguntas, com o objetivo de poupá-lo daquele sofrimento. No entanto ele, depois de alguns minutos, continuou narrando o acontecido. Disse que não fizera nada porque no final de semana seguinte, teriam que cumprir um compromisso assumido há muito tempo, Seriam padrinhos de casamento de um amigo e não pretendia causar um problema, desistindo do compromisso na última hora. Só depois do casamento ele comunicou a ela que já sabia da traição e que , diante disso, não poderia continuar com aquele relacionamento.
Mary, percebendo o sofrimento dele, acreditou que ainda a amava e voltou a argumentar que a tentativa de reconciliação poderia por fim ao sofrimento que sentia, que o erro faz parte da vida do ser humano, que ela poderia estar arrependida e percebido que ele era mais importante, podendo, dali para a frente, tornar-se uma nova mulher, respeitando-o e reconhecendo seu valor. Ele afirmava que isso era impossível, que não poderia conviver com alguém que já o traíra. Ela, diante da convicção dele, aconselhou-o a procurar um novo amor, que era a melhor maneira de esquecer o antigo. Que era necessário fazer algo para terminar com aquele sofrimento com raízes no passado e que a melhor maneira de conseguir isso era encontrar um novo amor.
Um outro irmão dele aproximou-se, com a mulher, que era amiga dela. A amiga perguntou-lhe se ela, ao sair dali, iria para casa. Ela respondeu afirmativamente e que não demoraria para ir pois estava preocupada com a chuva que tornaria a estrada de terra muito escorregadia e perigosa. A amiga perguntou-lhe se poderia dar carona ao cunhado, que conversava com ela, que viera com eles, mas que eles não voltariam para casa, pois pretendiam ir até a cidade. Ela disse que não haveria problema, que tinha espaço no carro, uma vez que só a mãe e os irmãos a acompanhavam.
Ela chamou a mãe e os irmãos e, dando carona ao rapaz, dirigiu-se para casa. Ao passar pela porteira que dava acesso à casa dele, parou. Ele disse que ela podia continuar pois pretendia ir até a vila próxima da casa da mãe dela, de onde voltaria com um amigo que estava lá, na casa da namorada. Ela estacionou no terreiro da casa da mãe e ele continuou a pé para chegar até a vila.
Pouco tempo depois ele voltou em companhia do amigo que pediu à Mary um pouco de gasolina emprestada, pois seu carro estava com o combustível na reserva e eles corriam o risco de não chegar em casa. Ela alegou que a gasolina do carro também estava no fim, que tinha o suficiente para chegar até o posto na cidade. Ele pediu que lhe emprestasse um pouco, prometendo que no dia seguinte devolveria. Ela foi pegar uma mangueira e uma garrafa de refrigerante, tirou a gasolina do carro e entregou ao rapaz. Este dirigiu-se ao interior da casa para tomar água e o outro ficou com ela enquanto fechava a tampa do tanque e guardava a mangueira.
Quando ela se dirigia para a casa, ele agarrou-a pelo braço e beijou-a. Ela ficou surpresa e disse que não podia fazer aquilo. Sentiu-se atordoada, dirigiu-se para a casa e ele foi embora. Ela, naquele atordoamento, só conseguia pensar que não podia fazer aquilo.
Não ouvia nem via nada embora as coisas estivessem em sua frente e as pessoas falassem com ela. Como se estivesse numa espécie de piloto automático, agia sem consciência, sem noção do que acontecia ou fazia. Sua mente estava totalmente ocupada pela frase: "Não posso fazer isso!" Ela não fizera nada! Fora beijada rapidamente e o autor se afastou rapidamente, como que fugindo de um crime, com medo. A mente continuava ocupada, inteiramente, com o "não posso fazer isso!"
Ouviu seu irmão, de dez anos, gritando que vira o beijo, que ela não deveria ter feito aquilo e que contaria para todo mundo, inclusive para o Diego, Estava revoltado, achando que aquele beijo era demonstração de falta de vergonha da irmã, falta de respeito pelo seu amor. Ela dizia que não beijara, que fôra beijada, que não tinha culpa pelo que acontecera. Ele não se convencia e continuava falando, acusando-a e ameaçando "por a boca no mundo", contar pra todos o que presenciara. Ela lhe disse que, se queria mesmo fazer isso, que pegasse sua agenda, onde estava anotado o telefone do seu amor e ligasse para ele.
O tio deles, que morava na casa vizinha, chegava naquele momento, um tanto "alto" pela bebida ingerida e ouviu o que o sobrinho dizia e ameaçava. Ironizou: "-Qué dizê que o rapaiz criô corage?".
Ela foi para o quarto e voltou ao torpor que sentia antes do escândalo do irmão. Ouvia vozes na cozinha mas não atinava com o que diziam. Sua mente estava ocupada pela frase: Aquilo não poderia ter acontecido! Não conseguia tirar essa frase da cabeça. Ela se repetia continuamente, incansavelmente, como escrita num luminoso com luzes fortes e brilhantes. Não conseguia ver, ouvir ou pensar em qualquer outra coisa.
Dormiu e acordou no outro dia, sem perceber. Além do "não posso fazer isso", um vazio, um autômato dirigido pelo piloto automático. Várias coisas aconteceram durante o dia mas ela, mesmo participando, não as percebia.
No final do dia o rapaz apareceu. Estava lá! Não falava, só estava lá, A mãe dela ofereceu-lhe um café, convidou-o a entrar. Ele aceitou as duas coisas e ficou lá. Conversa pouca. A mãe dela fazia o possível para introduzi-los na conversa, enquanto eles permaneciam monossilábicos. Ele foi embora depois de algumas horas, não muitas, duas ou três, talvez.
O "não posso fazer isso"ganhou um companheiro: "preciso ligar para Campo Grande", preciso avisa-lo do que está acontecendo; prometi que ele seria o primeiro a saber!" Dormiu e acordou como na manhã anterior: vazia, só o "não posso fazer isso" e o "preciso ligar para ele" como companheiros constantes.
Foi até a cidade, passou no banco para sacar o dinheiro que seu amor havia prometido depositar na conta do cunhado dela. O dinheiro não estava lá. Não constava o depósito prometido. Achou que poderia ter acontecido algum problema e procurou o gerente. Este consultou a conta e confirmou que nenhum depósito havia sido feito nos últimos dias. Ela ficou arrasada, desnorteada; não tinha um centavo, o carro estava sem gasolina, não tinha o mínimo nem para voltar para a casa de sua mãe. Que faria? Que teria acontecido? Ele nunca falhara em compromissos desse tipo. O que faria agora? Como faria para colocar gasolina no carro? Sentia a cabeça atordoada pelo acontecido na noite de domingo, pelas duas noites mal dormidas e, agora, não sabia o que fazer quanto ao dinheiro necessário para abastecer o tanque do carro. A frase: tenho que ligar pra ele, voltou à sua mente. Dirigiu-se a um telefone público e ligou. Quando ele atendeu, ela disse:
-"Tenho uma coisa muito ruim pra te contar. Se prepara que é muito ruim, mesmo! Domingo fui na festa, conheci um menino e fiquei com ele.
Depois de alguns segundos de silêncio ele falou:
-"Tá bom! E aí?
-"Preciso de um tempo pra pensar, uma semana, um mês, não sei. Preciso pensar pra tomar uma decisão.
-"Quer dizer que ficou, realmente impressionada por ele. Gostou dele?"
-"Se não fosse por isso, não teria ficado com ele!"
-"Está gostando mais dele do que de mim?"
-"Não sei. Preciso de um tempo pra descobrir. Você sabe como são essas coisas, já passou por isso."
-"Compreendo! Faça o que for preciso, pense, experimente, analise e decida. Mas, por favor, me mantenha informado, me ligue sempre e me conte como as coisas vão indo.Sacou o dinheiro que mandei?"
"-Não, não tem dinheiro na conta, não caiu nada."
"- Como assim? Fiz o depósito na quarta feira passada, dia vinte e dois. No máximo, na quinta feira, o dinheiro já deveria estar na conta."
"-É, mas não tinha dinheiro nenhum na conta."
"-Peça para o seu cunhado verificar o que aconteceu, junto ao gerente, pois tenho o recibo do depósito."
"Tá bom, vou falar pra ele. Eu já falei com o gerente e ele confirmou que não foi feito nenhum depósito."
"-Peça para o seu cunhado verificar. Me ligue contando o resultado. O dinheiro não pode ter desaparecido. Por favor, se cuide! Mantenha a cabeça no lugar, pense bem, analise com cuidado e me ligue informando o que vai acontecendo, inclusive o referente ao dinheiro."
-"Tá bom. Chau."
-"Tchau. Te amo!"
Ela colocou o telefone no gancho e pensou: "Por que falei isso? Não era isso que queria dizer! Só queria contar o que havia acontecido, dizer que é a ele que amo! Por que disse isso? Agora estou perdida, ele não vai mais me querer!"
Se já estava atordoada, agora ficara bem pior! Sentia como se houvesse um carrossel em sua cabeça: coisas giravam, giravam e ela não conseguia identifica-las com clareza. Por que dissera aquilo a ele? Por que o dinheiro não estava na conta? Será que ele fizera o depósito? Como faria pra colocar gasolina no carro? Tudo isso ficou girando em sua cabeça por um bom tempo, como um verdadeiro carrossel. Finalmente ocorreu-lhe procurar seu pai e pedir-lhe o dinheiro suficiente para colocar gasolina que lhe permitisse voltar para a casa da mãe.
Pegou o carro e dirigiu-se para a casa do avô, onde o pai morava. No caminho, encontrou a tia, que também mora lá. Esta lhe informou que seu pai não estava em casa, que estava trabalhando. A tia percebeu que ela estava diferente, esquisita e perguntou-lhe se estava com algum problema. Ela contou-lhe que estivera no banco para retirar o dinheiro que o Diego prometera mandar-lhe e que o dinheiro não havia chegado. Que estava sem combustível para o carro e que, por isso, viera procurar o pai para pedir-lhe ajuda. A tia alegou que também passava por dificuldades financeiras mas prontificou-se a emprestar-lhe o que sobrasse das compras que estava indo fazer. Voltou com a tia até o centro, esperou que ela fizesse as compras e ficou aliviada ao receber os dez reais que a tia lhe oferecia.
Pegou o carro, colocou gasolina e voltou para a casa da mãe. Subindo a serra, pela estradinha de terra molhada, um único pensamento povoava sua mente: "Por que disso aquilo? Não era o que queria dizer!" O resto continuava vazio, no piloto automático, não via o que estava à beira do caminho, nem na frente, nem nada...tudo se resumia a: "Não era aquilo que queria dizer!"
Chegou na casa da mãe, era terça feira, vinte e oito de janeiro. Perguntaram-lhe o que havia feito, o que havia acontecido e ela respondia: "Nada, tá tudo bem." Não sentia nenhuma emoção, nem no "não era aquilo que queria dizer!". Estava vazia, no piloto automático.
Passou o resto da semana fazendo trabalhos domésticos: lavando roupa - quanto mais lavava, mais roupa suja aparecia - fazendo comida, limpando a casa e ouvindo a conversa dos parentes que não se cansavam de argumentar em favor de sua permanência ali, da loucura que seria ir morar tão longe com alguém que até fome já a deixara passar. Ouvia tudo como se falassem de outra pessoa, de alguém desconhecido, não dela. Alguém ou alguma coisa, usava suas cordas vocais, falava, pelo piloto automático. Ela não participava de nada, deixava-se levar, passiva, dirigida como um autômato, sem vontade, sem participação. Nem a falta de dinheiro a incomodava. Como os cigarros tivessem acabado, fumava "palheiro", cigarro feito de fumo, enrolado em papel comum. Muito forte, de gosto ruim mas nem isso fazia diferença.
Na quarta feira, no final do dia, o rapaz apareceu de novo. Do mesmo jeito, calado. A mãe dela convidou-o a jantar e ele aceitou. A mãe dela tentava puxar assunto mas só ela falava, os outros se limitavam a monossílabos. De repente, como quem encontra coragem, o rapaz falou que estava pagando um consórcio de móveis, há vários meses, que só faltavam dois para quitar o plano e que, até agora, não recebera os bens. Que, na festa de domingo, encontrara um amigo de seu irmão, que morava em São José dos Campos, com quem seu irmão comentara a respeito do consórcio que ele pagava. O homem aconselhara-o a procurar a empresa e cobrar uma solução, pois havia muitas empresas enganando as pessoas, aplicando verdadeiros "contos do vigário" Que ele deveria procurar informações para saber se o consórcio que estava pagando era honesto ou obra de estelionatários. Claro que sua explanação era confusa, ele repetia muitas vezes que pagava parcelas há muitos meses e que não recebera nada, mas não sabia o nome da empresa que promovera o consórcio, muito menos as regras que orientavam a entrega dos móveis. Repetia constantemente que o vendedor lhe prometera que, no máximo, em seis meses, receberia os bens adquiridos.
Ele falava, a mãe dela, o tio e a tia escutavam e diziam que, realmente, ele deveria fazer alguma coisa; não sabiam o que, mas afirmavam que deveria fazer alguma coisa. Ela, sentada num banquinho sobre a base do fogão de lenha, fumava um "palheiro" e vagava por pensamentos confusos, que, na verdade, não podem ser definidos como pensamentos mas coisas que ocupavam sua mente: frases, imagens, sensações; tudo muito confuso. Tinha que pagar a tia, Por que dissera aquilo a seu amor? Por que o dinheiro não estava no banco? Até quando teria que fumar palheiros? Seu amor não quereria mais vê-la, nem falar com ela, muito menos querê-la de volta. Uma coisa dava lugar a outra e, esta, a outra e assim sucessivamente, como um carrossel. Não era a busca de um caminho, muito menos a tentativa de buscar soluções, era como se estivesse assistindo um filme, apaticamente, onde as coisas se repetiam, uma atrás da outra, sem mudanças, sem novidades, sem melhora nem piora. Só as mesmas coisas se repetindo, como legendas coladas num carrossel.
Foi chamada à realidade pela mãe que parecia estar tentando chamar-lhe a atenção há algum tempo. Disse-lhe do problema que o rapaz estava relatando, que ela, o cunhado e a irmã achavam que ela poderia ajuda-lo. Que tendo morado e trabalhado em São Paulo, teria condições de orienta-lo a como proceder para resolver o problema. Relataram-lhe o que o rapaz contara, de uma maneira confusa, cada um contando um pedaço, da maneira que entendera. Na verdade, ninguém entendia mais do que o rapaz e este entendimento se restringia a que fizera vários pagamentos e que não recebera os produtos prometidos. Ela conseguiu entender mais ou menos o problema e concordou que o rapaz deveria tomar alguma providência, ir à séde do consórcio e pedir informações a respeito do contrato e sobre a previsão da entrega dos produtos. Ele, apoiado pelos outros, pediu-lhe para acompanha-lo até São José dos Campos para resolver o problema. Ela alegou que o carro não estava em condições de viajar, principalmente pelo estado dos pneus. Ele alegou que, se o problema fosse esse, ele pagaria a troca dos pneus e, se não houvesse outro problema, poderiam viajar no começo da próxima semana. Ela disse que, nessas condições, não via problema em leva-lo.
Chegou o sábado e, ele apareceu. Chegou, ficou.... A mãe dela puxava conversa. Nada. Só monossílabos. As horas passando. Um café, um prato de comida, um monossílabo de vez em quando. Já era tarde, ele foi embora.
No domingo, lá estava ele de novo. Quieto, sem palavras, monossílabos. Depois de ficar algum tempo do lado de fora da casa, entrou, tomou café e conversou um pouco daquela conversa cotidiana de quem não tem o que dizer, com a mãe dela. Ela resolveu sair para o terreiro, acendeu um cigarro e encostou-se no carro. Passado algum tempo ele saiu e aproximou-se dela. Não falou, só se aproximou, Movimentava-se de um lado para outro, vagarosamente, passando bem próximo dela, esbarrando levemente, de vez em quando. A vontade de agarra-la era muita. A coragem... pouca. Ela não se movia, só fumava.
Ele perguntou quando ela pretendia ir à cidade trocar os pneus. Ela disse que dependia dele, quando ele pudesse dispor do necessário para paga-los. Ele disse que poderiam ir na manhã seguinte, pois pretendia ir a São José dos Campos na terça feira próxima. Ela concordou e continuou fumando o palheiro e ele mostrando-se inquieto, andando vagarosamente de um lado para o outro. Depois de algum tempo, parou a poucos metros dela e disse-lhe que precisavam praticar sexo. Não falou como quem sugere ou pede mas como quem se sente com direito a isso. A distância a que se postou para falar isso acusava receio da reação dela mas falou como quem acredita que tem direito ao que pede. Não era um pedido, era uma espécie de intimação, como quem cobra um direito. Ela disse que não. Não foi um simples não, foi como uma sentença fria, convicta, que não deixava dúvidas. Falou como que impulsionada por uma mola, automaticamente. Não pensara para dar a resposta, as primeiras sílabas dela se confundiram com as últimas dele. A resposta fora tão segura, tão convicta que ele ficou abestalhado. Aparentemente, embora pareça ter-lhe custado muito dizer aquilo, não esperava uma resposta negativa. Acreditava que o fato de não ter sido repudiado ostensivamente ao beijá-la, nem ter sido criticado, por isso, nos encontros seguintes, associado ao fato de que ela se mostrara muito liberal na conversa que tiveram na festa quando abordavam o romance malfadado dele com a ex-namorada, onde ele comentara que tivera dificuldade até conseguir praticar sexo com ela pela primeira vez, que ela se mostrara reticente, esquivando-se por muito tempo. Lembrou-se que ela dissera que aquilo era fruto de preconceitos pois se houver emoção suficiente atraindo o casal, o sexo é pura conseqüência e nada deveria impedir que acontecesse naturalmente como conseqüência de uma emoção em andamento. Que não via porque o preconceito deveria prevalecer sobre a vontade dos dois. Por isso não esperava aquela negativa, principalmente, com tamanha força e convicção. Nem lhe passou pela cabeça perguntar o porquê. Preferiu acreditar que ela estava se fazendo de difícil para não parecer que se entregava à primeira proposta. Ela parecia estar com a cabeça em outro mundo, longe dali. não demonstrava revolta pelo que ele dissera, não demonstrava qualquer tipo de emoção, era como se não estivesse ali, não tivesse ouvido aquilo. A única coisa que acusava sua presença, era a forte convicção da resposta. Ele acreditava que ela estava se comportando como convinha a uma mulher de respeito, reservando-se para o momento certo. Pensou que pagando a troca dos pneus do carro dela estaria dando um passo para submetê-la a ele. Ela terminou de fumar o palheiro e dirigiu-se para o interior da casa. Ele seguiu-a. Ela foi sentar no banquinho na base do fogão de lenha e ele ficou em pé na porta da cozinha. A mãe dela convidou-o a entrar e tomar café. Ele aceitou e sentou-se no banco ao lado da mesa. A mãe dela perguntou se já haviam combinado quando iriam trocar os pneus e ele respondeu que iriam no dia seguinte. Ela continuou o interrogatório perguntando quando iriam a São José dos Campos para resolver o problema do consórcio. Ele disse que pretendia ir na próxima terça feira, que tinha pressa em resolver o problema. Tomou o café, ficou mais um pouco, disse que voltaria na manhã seguinte para irem trocar os pneus, despediu-se e foi embora.
Na manhã seguinte o rapaz chegou bem cedo. Foram para a cidade levando a mãe dela e o irmãozinho. Trocaram os pneus, abasteceram o carro com gasolina e voltaram.
Na manhã seguinte, saíram cedo, só os dois, para ir a São José dos Campos tentar resolver o problema do consórcio.
Ao chegar no entroncamento com a SP-050, sem trocar palavra, ela disse-lhe que o caminho que costumavam fazer para ir para São Paulo, era por Santo Antonio do Pinhal mas que ela não sabia entrar em São José dos Campos por ali, por isso iriam por Monteiro Lobato, caminho que conhecia e que os levaria até a cidade de São José sem problemas. Ele balançou a cabeça afirmativamente. A viagem continuou muda, só a música do toca-fitas.
Chegaram a São José e ela parou para pedir informação de como chegar ao centro. Parou mais duas vezes para pedir informação e ele começou a se mostrar inquieto, acusando-a de ter dito conhecer a cidade e que estava demonstrando não conhecer nada. Ela negou ter dito conhecer a cidade, tendo se limitado a dizer que conseguia chegar até ela e que, perguntando, chegaria onde fosse preciso. Ele, além da inquietude, parecia estar gostando de descobrir que ela não conhecia a cidade, que não era tão sabida como fazia crer. Ela achou que as informações conseguidas eram confusas e resolveu acompanhar um ônibus interestadual, confiando que ele a levaria até a rodoviária. Acertou; logo depois o ônibus entrava na rodoviária e ela estacionava próximo a um telefone público. Disse a ele que telefonasse ao conhecido e informasse que já estavam ali e o esperavam. Ele se negou a ligar, mostrando toda sua insegurança em lidar com uma cidade. Pediu que ela ligasse porque ele não tinha jeito para essas coisas.
Ela, apaticamente, concordou. Pediu-lhe o número do telefone e o nome do homem e ele lhe entregou um papel com as informações. Ela ligou e poucos minutos depois o homem chegou até eles. Morava muito próximo dali. Levou-os até a sede do consórcio, que ficava nas proximidades.
Ao chegar ele parou na porta, mostrando, outra vez, toda sua insegurança e incompetência para comunicar-se. Ela instigou-o a entrar e ele continuou empacado, alegando que não sabia o que dizer. Apaticamente ela tomou a iniciativa de entrar, puxou-o e pediu-lhe os recibos que comprovavam os pagamentos já realizados. Ele entregou-os a ela, que se dirigiu a um atendente e pediu que esclarecesse a situação daquele contrato. O atendente consultou uma pasta e informou que estava tudo em ordem e que até meados do mês ele receberia os móveis. Ela perguntou a ele se queria mais alguma informação e ele balançou a cabeça de um lado para o outro, indicando que não queria mais informações. Saíram e, do lado de fora, o conhecido que os acompanhava alertou-o de que esse era o procedimento que eles costumavam usar: prometiam, mas não cumpriam. Aconselhou-o a esperar o tempo pedido e, se os móveis não fossem entregues, que procurasse o orgão de defesa do consumidor para reclamar seus direitos. Convidou-os para almoçar na casa dele, mas não aceitaram. Despediram-se e tomaram o caminho de volta.
Em Monteiro Lobato, ela parou o carro e dirigiu-se a um bar para tomar café e comer um pão de queijo. Ele seguiu-a e pediu o mesmo que ela. Terminado o pequeno lanche, ela pediu um maço de cigarros e ele resmungou uma contrariedade contra o vício dela. Ela não lhe deu atenção, foi ao banheiro e, logo depois, estavam na estrada novamente.
Ao passar na cidade, onde morava o pai dela, resolveu entrar e, ao passar pela praça central, avistou-o. Parou o carro e dirigiu-se a ele. O pai, logo que ela se aproximou, disse-lhe de sua revolta pelo que ela estava fazendo, que não tinha cabimento que ela tivesse abandonado o marido para se relacionar com um homem como aquele. Que não a considerava mais sua filha, que não contasse com ele para nada. Falou isso segurando o braço dela com força e, todos os que assistiram a cena tiveram a impressão que iria agredi-la. Mas não! Soltou o braço dela e foi embora, deixando-a pasma no meio da rua, revoltada com a atitude dele, envergonhada diante de todos os que a observavam. Entrou no carro e foram embora. Ele reclamou do menosprezo que o pai dela demonstrara por ele.
Como o pai dela ficara sabendo do que estava acontecendo?
Nesses lugares, as notícias não correm; voam!
Nela, a apatia dera lugar à revolta, não se conformava com a atitude do pai. Nos seus vinte e dois anos de vida, ele nunca a tratara daquela maneira, sempre foram amigos e se deram muito bem. Não se conformava com a atitude dele!
Parou num posto de gasolina, próximo a São Bento do Sapucai para abastecer o carro, com combustível. O frentista, que já a atendera outras vezes, veio rápido, todo solícito e sorridente, cumprimentou-a, pegou a chave que ela lhe estendia e foi cuidar do abastecimento. Ao final entregou-lhe a chave e ofereceu-se para lavar o carro, mas ela não aceitou. Ofereceu-lhe água gelada, balas...Ela recusou gentilmente, pagou a gasolina e retribuiu o chauzinho que o frentista lhe dera sorridente. Ao olhar para o lado, percebeu o descontentamento, na verdadeira careta em que se transformara o rosto dele, demonstrando todo o ciúme que sentia, a revolta pelo tratamento que o frentista dedicara a ela. Reclamou, entre dentes, da retribuição dela, respondendo ao aceno de adeus.
Estou namorando com esse homem? Parece que sim. Meu pai me acusou disso, ele se sente no direito de me recriminar e demonstrar ciúme, me vê como propriedade sua! Acho que estou namorando com ele. A revolta desaparecera, dera lugar, novamente, à apatia. Era namorada dele...parece que sim.
Chegaram na casa da mãe dela e ele ficou por ali, sem falar, só monossílabos como resposta, a tentativa de roçar nela, a revolta com suas esquivas. A mãe dela perguntou, toda animada, quando chegariam os móveis e demonstrou contentamento com a promessa de que seriam entregues até meados do mês. Comunicou que , no dia seguinte, tinha que ir à cidade pois tinha consulta marcada no posto de saúde. Intimou-a a leva-la e convidou o rapaz para acompanha-las. Ele aceitou, jantou, ficou mais um pouco e foi embora.
Ela contou o que acontecera no encontro com o pai e todos ficaram revoltados com a atitude dele, alegando que, de alguém como ele, não se poderia esperar outra coisa.
No dia seguinte voltaram à cidade, onde a mãe passou no médico e, depois, foram tomar um lanche num bar. A mãe chamou o rapaz e os dois saíram, enquanto ela saboreava um salgadinho e tomava um refrigerante. Pouco depois a mãe a chamou para que a acompanhasse. Entraram no cartório, que ficava ao lado do bar. A escrevente pediu que ela lhe apresentasse a cédula de identidade, e ela apresentou. Pediu que assinasse um papel e ela assinou. A moça falou que o casamento seria realizado no dia vinte e oito de março as quatro horas da tarde. Ela concordou. Sem questionar, sem gostar, sem desgostar, apaticamente, passivamente, sem emoções, sem razões. Obedecia, aceitava, passivamente.
Voltavam para casa e ela parou o carro num posto de gasolina ,na saída da cidade, e pediu para colocar um pouco de gasolina, só para chegar no posto que estava acostumada a abastecer. Estava tão desconectada do mundo que, quando o frentista lhe entregou a chave, agradeceu, deu partida e ia sair, quando o frentista a advertiu de que não fizera o pagamento. Pagou, saiu e dirigiu-se ao mesmo posto de gasolina na estrada, onde parara no dia anterior, para abastecer de combustível. O frentista aproximou-se solícito e sorridente, demonstrando o prazer de servi-la. Ela entregou a chave, pediu abastecimento, permaneceu inerte, apática. Quando recebeu a chave de volta, pagou o combustível e recusou as gentilezas que o frentista lhe oferecia: lavagem do carro, água, balas. Toda vez que parava ali, ele se desmanchava em solicitude, fazendo o possível e o impossível para agradá-la. Ele não gostou e mostrou, novamente, a insatisfação com o descaramento do rapaz que não regateava gentilezas a sua noiva. Pensou que, quando ele não estivesse, ela retribuiria as gentilezas recebidas. No entanto, não disse absolutamente nada ao rapaz. Ela ouviu a revolta dele e pensou: "O que está acontecendo? Por que ele está agindo como se fosse meu dono? Casamento? Eu vou casar? Como? Perguntas sem emoção, sem razão, só apatia, passividade. Casar? Casar com aquele homem? Aceitação apática, sem vontade, sem querer, sem nada, sendo levada como gado ao matadouro ou ao pasto ou a qualquer lugar. Sendo levada, deixando-se ir.
A mãe comenta que uma vizinha tem um vestido de noiva, novo, e que não se negará a empresta-lo. Fala do casamento como se fosse o seu, com um entusiasmo incrível; na necessidade de fazer os convites, providenciar as roupas, sapatos, noivinhos, a festa, em fim, tudo o que é cabível em um casamento. Ela apática, sem vontade, sendo levada, indo. Tinha a impressão de que aquilo já se arrastava há muito tempo, perdera a noção do tempo. Na verdade, haviam se passado somente doze dias desde o primeiro encontro. Doze dias...e o casamento já estava marcado para dali a pouco mais de um mês. Ela perdera a noção do tempo, achava que já fazia muito tempo e que o casamento demoraria muito a acontecer. Casamento? Ia casar? Parece que sim...todos diziam isso!
Lembrava-se do seu amor, distante, perdido. Não quereria mais saber dela, estaria magoado, sofrendo, revoltado com o comportamento dela. Não! Não tinha mais jeito, seu destino estava traçado, não tinha como voltar atrás. Ia casar.Casar? É...
ELE
11/02/2003
No dia onze, Diego, aconselhado pela razão que lhe dizia que ela poderia estar passando por dificuldades financeiras, uma vez que no dia que ela lhe ligara, comunicando que conhecera um rapaz na festa e que ficara com ele; dissera, também, que o dinheiro que ele havia prometido enviar para a conta de seu cunhado, não havia chegado. Ele havia mandado e, depois que ela disse não haver chegado, ele foi ao banco e confirmou com a gerente que o depósito fôra feito e que estava na conta indicada. Ele, mesmo assim, considerou que o banco poderia ter cometido algum engano e que ela não tivesse recebido o dinheiro, o que lhe causaria problemas sérios, pois não tinha nenhuma outra fonte onde se socorrer.
Até aquele dia, a emoção dele cobrava a cada minuto que ele lhe ligasse, pedisse informações, forçasse sua volta, apelasse para tudo que fosse possível e que propiciasse sua volta. A tristeza era infinita, a ansiedade, agoniante. A razão lhe dizia que deveria respeitar o pedido dela, concedendo-lhe o tempo que pedira para pensar e avaliar seus sentimentos. Ela fôra honesta e dígna comunicando-lhe de pronto o acontecido, cumprindo o que sempre prometera caso algo assim acontecesse. Que ele não deveria interferir, o que seria um desrespeito a quem sempre lhe dera tanto amor e dedicação, de quem não tinha absolutamente nada a reclamar, muito pelo contrário; só tinha o que agradecer. Deveria dar-lhe o tempo pedido, procurando controlar a emoção, esperando a decisão dela que, seguramente seria lúcida, coerente e honesta.
Quando ele se perguntava por que ela não ligava como ele lhe havia pedido, mantendo-o informado do que acontecia; a razão lhe dizia que não havia nada de estranho nisso; que ela, que estava vivendo uma nova paixão, que lhe estaria propiciando muito prazer e felicidade, relutava em ligar e ouvir lamentações, apelos para que voltasse, em fim, coisas tristes que interfeririam em sua decisão. Pedira um tempo e estava usando-o da melhor maneira possível, procurando dirimir dúvidas, sentir e pensar com liberdade. Portanto, não era de estranhar que não tivesse ligado ainda. Ela nem mesmo definira qual seria o tempo necessário, portanto, só restava, a ele, esperar e torcer para que a decisão lhe fosse favorável.
Nesse dia, porém, não se sabe se com liberdade ou manipulada pela emoção, a razão aconselhou-o a ligar para ela, procurando saber se estava bem, se o dinheiro tinha chegado, se não precisava de algo que ele pudesse ajudar.
Ao sair do trabalho, no final da tarde, correu para a vila, comprou cartões telefônicos e dirigiu-se a um telefone público para ligar para ela. Tentou a casa de um tio dela que mora ao lado da casa da mãe dela. Ninguém atendia. Tentou o telefone de um outro tio, que mora no mesmo bairro e também não conseguiu. Tentou várias vezes e nada. A ansiedade já não cabia nele, vazava por todos os poros, espalhando-se em sua volta. Talvez fosse perceptível a quem passasse por ali.
Resolveu ligar para um telefone público que ficava nas proximidades da casa do pai dela. Pediu a quem atendeu que fosse chama-lo. Quem veio atendê-lo foi a tia dela que respondendo a pergunta dele sobre se tinha notícias dela, disse que não tinha muitas e, quando ele perguntou se sabia como ela estava, ela respondeu que estava "muito" bem. Aquele "muito" chamou a atenção dele, era significativo, pareceu-lhe que poderia querer dizer que: agora, ela estavam bem, afastada dele, como se sua companhia fosse ruim para ela. Ele comentou que estava preocupado com o fato de ter feito um depósito no banco e que ela havia lhe dito não ter recebido. A tia confirmou que não recebera mesmo. Terminou o telefonema pedindo que, se a encontrasse, pedisse que ligasse para ele.
Aquele "muito" não lhe saia da cabeça. A emoção gritava-lhe que ali estava a chave da questão. Ela alegara um romance para livrar-se dele, que alguma armação estaria por trás de tudo aquilo. A razão considerava isso como uma possibilidade e passou a trabalhar com ela. Considerou que alguém, até mesmo alguém da família dele, tivesse conversado com ela e convencido-a de que deveria deixa-lo, talvez tivesse feito, até, alguma chantagem. Tudo era possível, afinal, um amor como o que viveram até ali, não poderia ser ofuscado por motivos simples, teria que ser algo muito forte. A emoção gritava, esperneava, cobrava uma atitude, que ele fizesse algo, alguma coisa, não oferecia nenhuma solução, só cobrava que fizesse alguma coisa. A razão considerava que alguma armação fosse possível, afinal, aquele relacionamento desagradava a muita gente, principalmente, parentes de ambos. Não seria de estranhar que houvessem tramado algo para separá-los e que tivessem obtido sucesso. No entanto, não deixava de considerar que uma nova paixão tivesse, realmente, acontecido, com força suficiente para abalar o amor vivido até ali. Emotiva como ela é, não era de estranhar que tal tivesse acontecido, que, essa paixão, fosse suficientemente forte para colocar em check o amor que vivera até ali, Considerava, ainda, o fato de que uma nova paixão tende a dominar a emoção, ofuscando todo o resto, inclusive um amor como o que viveram até ali.
A emoção não queria saber de análises, de raciocínios; queria solução. Não queria saber dos meios, queria chegar, o mais rápido possível, ao final. A razão, talvez influenciada pela emoção, começou a considerar mais fortemente a possibilidade de algum tipo de armação. Considerava que, caso isso fosse verdade, não seria difícil esclarecer e mostrar a ela ,do que fôra vítima, esclarecendo tudo e possibilitando a reconciliação. Desnecessário dizer do como a emoção usou a ansiedade para atormentá-lo até a hora de conseguir falar com ela. Como desde o início, cada minuto parecia durar horas, as horas demoravam dias para passar e os dias, davam a impressão de durar semanas. Tinha a impressão de ouvir a campainha do telefone, mesmo que imperasse o mais absoluto silêncio. Era uma ansiedade terrível que, em contrapartida, oferecia uma esperança, desaparecida desde o início daquele episódio. Foi uma noite interminável, a imaginação procurando quem pudera ter feito tamanha monstruosidade (já considerava a possibilidade de armação como uma verdade, quase, absoluta), A esperança indicava a possibilidade de um final favorável, que pusesse fim a tanta tristeza e sofrimento.
O dia amanheceu e demorou uma eternidade para passar. Na hora do almoço, quando ela costumava ligar, a ansiedade atingiu o ápice, as mãos suavam e as têmporas latejavam, dando a impressão que o cérebro iria explodir. A hora do almoço passou e a ansiedade deu lugar à frustração. Voltou para o trabalho como se carregasse o mundo nas costas. Durante a tarde a ansiedade voltou, resolveu que ligaria pra ela, não dava pra esperar mais!
No final da tarde, correu para casa e ligou para a casa do tio dela, vizinho de sua mãe. Ninguém atendeu. Ligou para o outro, que morava um pouco mais distante e conseguiu. Pediu ao tio que a avisasse de que precisava falar com ela, com urgência. Ele prometeu transmitir o recado, confirmando que ela se encontrava na casa da mãe.
A emoção mostrava toda sua potência, insaciável, sádica mesmo, maltratando, oferecendo um coquetel de ansiedade, tristeza, esperança, angústia
O tempo não passava, arrastava-se numa lentidão terrível! Ele não conseguia fazer nada, esperava dominado pela ansiedade, uma ansiedade dolorida, sufocante. A emoção dizendo-lhe que deveria força-la a encontrar-se com ele, conversar cara a cara não pelo telefone, onde ele não poderia perceber as expressões de sua fisionomia, nem ela poderia ver nos seus olhos o quanto estava sofrendo. A razão, a custa de um esforço hercúleo, tentava aplacar a emoção e aconselhar que deveria agir com calma, dizer-lhe da desconfiança de que alguém pudesse ter armado uma conspiração para afasta-los. Que se isso fosse verdade, poderiam esclarecer a verdade através do sistema que tinham usado até ali: conversa honesta, identificação de causas, análise, equacionamento e solução. Aconselhava-o a evitar o domínio da emoção, falar e ouvir com lucidez, buscando identificar a verdade, argumentando com inteligência, tentando compreender a situação dela, o que estaria sentindo, as dificuldades por que pudesse estar passando. Não esquecendo que a causa daquilo poderia ser o que ela alegara: paixão, emoção extremamente forte, capaz de colocar em check o amor que sentira até ali. Que, se isso se confirmasse, ele deveria respeitar a posição dela, compreender o quanto isso poderia ser forte, a dificuldade que ela poderia estar encontrando em decidir, buscar a melhor solução.
A emoção gritava, histérica, fazendo o possível para anular a razão, dizendo que aquilo era um caso de sentimento, não de inteligência; que nenhuma racionalidade iria impedir o sofrimento caso ela decidisse abandona-lo, que deveria agir com força, força-la a voltar, defender que ele era o melhor para ela, que ninguém poderia substituí-lo, que ele era o seu verdadeiro amor, maior e único, insubstituível. Que deveria agir tendo isso em mente, não as bobagens que a razão defendia!
Ele sentia-se sufocado, querendo assumir a razão, sendo pressionado pela emoção a obedecê-la, agir irracionalmente, buscando os fins sem se preocupar com os meios. Caminhava de um lado para outro, tomando o cuidado para não afastar-se mais que o suficiente para atender o telefone, no máximo, ao segundo toque. Saiu da casa e olhou o céu, pensou que ela estava sob as mesmas estrelas que agora observava, pediu que elas servissem de satélite de comunicação e dissessem a ela para apressar-se em telefonar, colocando fim naquela tortura que sentia.
O telefone tocou! Estava ao lado dele, colocou a mão, imediatamente, sobre o fone. Esperou o segundo toque, temendo que, se atendesse no primeiro, a ligação não se completasse. Pareceu-lhe uma eternidade o tempo entre o primeiro e o segundo toque. Tirou o fone do gancho e ouviu a mensagem de ligação a cobrar. O coração disparado, a respiração ofegante, a razão aconselhando, a emoção gritando e exigindo obediência.
-"Alô"
-"Oi, tudo bem?"
- "Tudo, e aí?"
-"Você pediu pra te ligar?"
-"Estou preocupado, você não ligou mais. Queria saber como você está, se recebeu o dinheiro que mandei, como estão as coisas?"
-"O depósito não caiu mesmo. Quanto a situação, não tem mais jeito, agora todos já sabem. No começo, como te falei, ninguém sabia de nada. Agora, todos estão sabendo, portanto não há o que fazer."
-"Molinho, me ocorreu que alguém pudesse ter armado alguma tramóia para nos afastar. Talvez, até alguém da minha família, pudesse ter armado alguma coisa para acabar com nosso relacionamento. Se for isso, por favor, me diga, vamos analisar o que fizeram, vamos esclarecer as coisas.
-"Não. É claro que o que me fizeram foi suficiente para me fazer ver o quanto fui indesejada, mas o motivo não é esse".
-"Então é paixão mesmo?"
-É.
-Bom, nesse caso, quero te dizer que gostaria de continuar sendo teu amigo. Falei várias vezes sobre isso, que tinha dúvidas se conseguiria continuar sendo seu amigo depois de terminar o relacionamento. Agora tenho certeza! Quero continuar sendo teu amigo, ajudando no que for possível. Você está precisando de alguma coisa, posso ajudar em algo?"
-Você não vai criar problemas em relação ao carro, vai?"
-"Não. Não vou criar nenhum tipo de problema". Vou continuar te chamando de molinho, se não tiver problema."
-"Não, não tem problema."
-"Gostaria que você me ligasse, pelo menos uma vez por semana. Isso me ajudará a superar esse período tão difícil."
-"Tudo bem, só que você sabe da dificuldade de ligar daqui; quando der eu ligo."
-"Entendo. Mas, por favor, me ligue pelo menos uma vez por semana."
-"Tá bom, chau."
-"Tchau. Um beijo."
Sentiu-se melhor. Pelo menos não precisaria culpar ninguém pelo seu sofrimento. Era causado por uma paixão, uma emoção mais forte que o amor que curtiam e que os unia. Que fazer? Só conformar-se! Chegara a hora da separação, do fim de um relacionamento que fôra maravilhoso, que causara felicidade e prazeres inimagináveis. Chegara ao fim. Agora era hora de conformar-se, procurar seguir vivendo e esperando o que o destino reservava para o futuro.
Desde o início desse episódio ele vinha escrevendo, registrando o que sentia e pensava. Resolveu ler o que escrevera até ali.
No dia dezoito, Mary e o noivo voltaram a São José dos Campos, uma vez que a promessa do consórcio não fôra cumprida. Saíram cedo da casa da mãe dela e, como havia chovido muito, encontraram a van que levava os estudantes para a cidade, encalhada num trecho da estrada de terra. A prima dela estava lá e, ao reconhecer o carro, fez sinal para que parasse e pediu para ir com eles, uma vez que não iria mais à escola por causa do incidente. Ela concordou desde que, da cidade, a prima ligasse para sua mãe e pedisse consentimento. Caso ela concordasse, não via problema em levá-la.
A prima ligou e com o consentimento da mãe, embarcou sua meninice de treze anos naquela viagem, com todo o entusiasmo de quem está acostumado a viver na roça e tem a oportunidade de ir a uma cidade grande.
Se na primeira viagem faltou conversa, nesta a tagarelice da menina não daria descanso aos ouvidos.
Ao chegarem no entroncamento da SP-050, ela fez o mesmo comentário que fizera na primeira viagem. A prima assustou-se, acreditando que ela não conhecia o caminho e que se perderiam, não conseguiriam voltar para casa, em fim, todos os medos do desconhecido. Ela acalmou-a, alegando conhecer o caminho, que só estava comentando sobre a possibilidade de chegar ao destino por caminhos diferentes. Que preferia aquele por conhecê-lo melhor.
Parou em Monteiro Lobato e, como no bar que estava acostumada a tomar café não tivesse pão de queijo, dirigiram-se a outro nas proximidades. Pediu o café e o pão de queijo e observou que ele pedira o mesmo. Ao terminar pediu a chave do banheiro, que ficava há alguns metros do bar e dirigiu-se para lá com a prima. Ao voltar, percebeu o descontentamento dele, que aumentou quando ela pediu um maço de cigarros. Acendeu um e dirigiu-se para o carro. Pouco mais à frente acendeu outro cigarro e ele reclamou asperamente.
A prima tagarelava o tempo todo e assim chegaram ao destino.
Logo na chegada, ela sentiu-se incomodada com o comportamento dele, negando-se a ligar para o conhecido, negando-se a atuar para resolver o problema, demonstrando toda a sua insegurança e incompetência. Como ele podia ser tão crítico e autoritário com ela e tão covarde frente a situações que, para ela, eram tão simples de serem encaminhadas? Era uma revolta apática, muito diferente daquelas que sentia quando sua personalidade se impunha. Agora era uma coisa chata, que fazia mal, mas que nem chegava a ter uma importância significativa. Era como se observasse aquilo em alguém desconhecido, a distância.
Fizeram a queixa no orgão de defesa do consumidor, despediram-se do conhecido e, recusando o convite para almoçar, tomaram o caminho de volta.
A prima comentou que estava com fome, que poderiam almoçar em algum restaurante, que ela tinha dinheiro. Demonstrava que a comida não tinha grande importância, nem mesmo a fome; o prazer vislumbrado estava em sentar-se na mesa de um restaurante, comer algo diferente da mesmice que estava acostumada.
Ao chegar em Monteiro Lobato, ela cedeu ao capricho da prima, estacionou e dirigiram-se a um restaurante. Era do tipo self service. Pegaram os pratos e dirigiram-se ao bufet. Ela serviu-se de feijoada com arroz a grega. Ele serviu-se do mesmo, no encalço dela, sem mudar absolutamente nada. Ela observou isso e sentiu a mesma revolta apática pela incompetência dele. Mais tarde ficou sabendo que ele detestava feijoada e mais ainda o arroz a grega. Comeu aquilo para não ter que optar, escolher, correr o risco de dar vexame.
De volta à estrada, a prima perguntou-lhe se ela iria continuar estudando, ao que ela respondeu afirmativamente. Ele disse que para tomar conta de casa e de filhos, não era necessário estudo e que não via como ela poderia estudar ficando grávida, tendo filhos. Ela disse-lhe que nunca pretendera ter filhos e que não mudara de idéia. Que considerava o estudo como algo muito importante. Ele teimava e recitava o mesmo discurso, sem pôr nem tirar uma única vírgula, sem considerar o mínimo do que ela dizia. A prima argumentou que deixara o namorado porque ele também pretendia que ela parasse de estudar.
Desconsiderando os argumentos do rapaz, a prima disse que, quando ela voltasse a estudar, lhe daria um jogo de canetinhas coloridas.
Ele continuou a argumentar que: mulher sua não estuda. Cuida da casa, dos filhos e serve-o. Para isso é que ele a sustentará.
A viagem seguiu até o posto do frentista solícito. Quando ela diminuiu a velocidade do carro e entrou no posto, ele já demonstrou todo seu descontentamento, vestindo a pior careta que conseguiu. O frentista recebeu-a com o sorriso costumeiro, cumprimentou-a, apanhou a chave e foi realizar o abastecimento. Ao final, devolveu a chave e, como de costume, ofereceu-se para lavar o carro. Desta vez ela aceitou, como também aceitou a água gelada, as balas e um pirulito. Ele parecia um touro enfurecido e imobilizado. Quando saiam do posto, ele comentou que se o frentista acenasse para ela, quebraria a cara dele. O frentista acenou com o maior dos sorrisos e ela retribuiu. Parou o carro e disse a ele que fosse realizar o prometido. Ele perguntou a ela se achava que valeria a pena. Ela respondeu que ele fizera a ameaça; que ele é que deveria decidir o que deveria fazer ou não. Ele quedou-se quieto e foram embora.
Seguiram viagem até a cidade. Ela estacionou em frente a lanchonete do Binho, entrou e pediu café. A prima e ele a seguiram. O Binho apresentou a ela os prospéctos de sua pousada e pediu-lhe que fizesse divulgação em São Paulo, aproveitando o conhecimento que ela e seu amor tinham. Não é preciso fazer muita força para imaginar a cara que ele fez e a contrariedade que sentiu. Ela se despediu do Binho e saíram.
No carro, ele disse que precisava ir ao armazém. Ela estacionou na frente e desceram; ele disse que ela teria que esperar, pois ele pretendia tomar uma cerveja, calmamente. Ela disse que ele poderia fazer o que quisesse, que usasse o tempo que julgasse necessário, pois ela iria embora. Ele dispensou a cerveja, entrou no carro e partiram para casa.
Ela estacionou na porteira que dava acesso à casa dele. Ali estavam os irmãos dele, o pai e a mãe. Ele disse que ela poderia continuar pois ele iria até a casa da mãe dela. Ela insistiu para que ele descesse. A mãe dele comentou que: se aquele relacionamento estava assim no início, que poderia acontecer no futuro? Um irmão dele comentou que era assim mesmo, que ele e a mulher também brigavam muito no começo, que o tempo e a convivência aclamariam os ânimos e acertariam a convivência. Ele desceu e ela foi para a casa da mãe.
No caminho pensou que ele apareceria por lá mais tarde e decidiu que não o receberia. Chegou, alegando estar com dor de cabeça, tomou banho, comeu algo e deitou-se. Ele, ao contrário do que ela imaginara, não apareceu.
No dia seguinte, foi levar uma vizinha que precisava ir até a cidade. A mãe foi junto. Lá, encontraram a irmã dela e o cunhado que tinham ido procurar um dentista para a irmã que passara a noite com dor de dente. Como não tivessem conseguido nenhum dentista alí, o cunhado pediu-lhe que os levasse até São Bento do Sapucaí. Ela levou-os e, na volta, foram à casa de seu avô, onde morava seu pai e duas tias. Seu pai não estava, o avô anda meio desligado do mundo e a tia solteira não liga para absolutamente nada. No caminho, ela parou num telefone público e ligou para Diego.
Diego, arrasado, pensava no que acontecera até ali, enquanto bebericava cerveja, sozinho, sentado em um banco, do lado de fora da casa. Pegou o caderno onde vinha registrando o que sentia, numa espécie de diário, folheou-o até a primeira página e passou a lê-lo:
“Quando me falou que era grave, não tive dúvida. O amor que me dedicara estava em risco!
Soubera, sempre, que esse dia chegaria. Tinha certeza. Entretanto, tinha um mínimo de esperança de que não aconteceria.
É a maldita lógica, que prevê o que pode acontecer com a emoção.
Disse que não era definitivo, que precisava de tempo, que não acontecera o mais grave.
Mais grave, o que pode ser mais grave que perder um amor? Que poderá ser?
Vejo-a fora de minha vida amorosa. Dói...não sei quanto...mas dói.
Quero o melhor pra ela. Tenho certeza que quero. Tenho dúvida se encontrará melhor. Não porque eu seja melhor mas porque a humanidade carece de melhor!
Me conforta pensar que pode ser melhor, Ne conforta saber que lhe dei o máximo meu, Me consola saber que não me esquecerá. Talvez tenha saudade...bem provável. Talvez se arrependa. Espero que não. Será?
Se não der certo, que parta pra outra. Quero continuar seu amigo. Quero ajudá-la, dentro do possível. O que ela me deu foi muito, muito mais do que esperara da vida!
Acabou...acho...dói.
Com quem vou conversar, como com ela? Quem me aconselhará, como ela? Quem me apoiará, como ela? Quem me amará, como ela? Quem me entenderá, como ela?
Ela sou eu! Feminino, com trinta e dois anos menos.
Estou agitado, sem fome. Como será amanhã?
Estou triste...com alguma felicidade. Por mais que tenha lutado contra e continue lutando, as maldades humanas me marcaram.
Será que o conheceu domingo? Seria a franqueza extremada!
Teria-o conhecido antes? Me comunicou para terminar?
Prefiro acreditar nela.
Mas se fosse a outra opção, que diferença faria? Seria pior por isso? Acho que não.
É a vida!
Me encontrou, encontrei-a...encontrou outro.
Não sinto vontade de encontrar ninguém!
Estou agitado, sem fome.
Estou triste...meio alegre, por ela. Amor próprio ferido, com certeza. Consciência do desfrutado...feliz...triste.
A cerveja está amarga!
Algo vibra dentro de mim. Parece ansiedade.
Acho difícil que volte pra mim.
Que força fizeram, pessoas próximas, pra nos separar!
Não conseguiram...não foram eles...foi a vida! A vida...seus mistérios.
Não parece tão difícil suportar. Não sei.
Estou agitado...sem fome.
A cerveja está amarga.
O dinheiro não chegou. Estava sem dinheiro. Nem gasolina. Ficara com raiva?
Não sei...não pareceu.
Não sinto vontade de chorar. Pensei que choraria...sorrindo. Ainda não chorei...não deu vontade.
Saí para o terreiro, olhei as estrelas, pensei que ela estaria sob elas.
Não deve estar passando bem...a possibilidade de um novo amor, talvez segurança...me deixar. Não deve estar sendo fácil! Talvez esteja pior que eu.
Senti-me grande, por tê-la! Agora, não sei que será.
Sinto que, ter morrido na passagem do ano, teria sido um prêmio. Que acho que não mereci!
Dei o primeiro passo para que minhas filhas vivam sem mim.
Meus pensamentos, outros pensaram...ou pensarão. Não faço falta.
Poderia ter sido poupado disso, para outra vida ou... para o fim.
Estou agitado! Sem fome... A cerveja está amarga.
Estou livre de uma prisão...da qual não queria sair. Não sei se vou saber viver sem ela. Acho que sim. Só não sei como!
As estrelas são as mesmas, sobre todos nós. O sono não vinha; chegou agitado, acordava muito...difícil dormir de novo.
Amor próprio ferido...ficou patente. Levantei mais sereno. Com o passar do dia, fui sendo tomado pela angústia/ Não tinha trabalho pra fazer, perambulando de um lado pro outro, o corpo fraquejando, como sintoma de gripe.
Recordei que o ambiente da serra, da cidade, onde nasceu e viveu; atuam negativamente sobre ela...perde-se...falta lógica.
Sinto fraqueza e angústia.
Fui na moreninha tomar cerveja com um conhecido. Falei dos trabalhos que fiz até ali, do dinheiro que não ganhei, da minha impotência diante da sociedade.
Em casa, comi um sanduiche, a força. Tomei banho, chorando...soluçando...muito.
Como a morte seria bem vinda!
Que me espera? Sei lá...
Penso no misterioso mal da serra, sobre ela.
Estará embarcando numa "roubada"?
Dói muito. Como dói! Dói por ela...dói por mim...pela humanidade.
Se soubesse que ela ficaria bem, doiría menos...acho. Mas não sei...a dúvida aumenta: será que alguém, como ela, não encontrará alguém que a mereça? Que possa dar-lhe o que merece? Sofro por achar que não. Torço pra que sim.
Eu me viro. Quem sabe não me bate a sorte e a morte me livre da dor?
Quem sabe...
Não quero me matar...quero morrer.
O sono não vinha. Demorei pra dormir, Em fim, dormi profundamente. Sem sonhos. Acordei melhor, mais tranqüilo. A dor do amor ferido está passando. Racionalizo. Ela precisa viver isso...experimentar. Vou apoiar até onde possa. Acho que compreendo.
Dormi pouco, acordei muito...pensava nela, que sua volta era questão de tempo.
Continuo sentindo que não volta...quero sua volta. Mesmo como amiga. O amor é importante...sua personalidade é mais! Gostaria que voltasse. Preciso de sua amizade, companheirice. Não vou forçar! Se achar que vale a pena, forço pra que fique com ele.
Manhã muito ruim. Talvez o sono...o pouco pra fazer...ociosidade pra sentir. Angústia agitada...sem fome. Sigo sem fome.
A tarde tive mais trabalho. A angústia diminuiu. Senti um pouco de raiva por ela não sentir o quanto se faz mal. Será que está se fazendo mal agora? Não sei...talvez.
Saí com companheiros. Jogamos bola, tomamos cerveja. Vamos ver como vai ser a noite. Sigo sem sono...sem fome.
Dormi pouco, pensei nela, com menos dor. Quis menospreza-la. Não dá! Errou no passado, errará no futuro, como todos. Mas não comigo. Eu sabia desse desfecho..contei-o sempre,a todos. Era inexorável...agüentou demais. Pressão de sua família, pior ainda, da minha.
Éramos um casal estranho. Só nós nos entendíamos. Muito trabalho, pouco dinheiro, menos lazer.
Medo da cidade longínqua, medo do calor. Que amor agüenta tanto?
Ontem, à noite, escrevi que a razão estava levando vantagem sobre a emoção. Conquistou bastante espaço mas o ciúme é cego, burro, ignorante, egoísta e teimoso como uma mula. Não conseguindo derrotar a racionalidade, age como um pernilongo que, não podendo picar, vinga-se atormentando o ouvido.
O ciúme é uma fábrica de mal estar, intrigas, desentendimentos, em fim, tudo que possa infernizar quem tem alguma coisa e a ama. Sempre controlei, razoavelmente, meu ciúme, pela racionalidade, compreendendo o mal que ele pode causar. Quando alguém olha para minha mulher admirando-a e, até, desejando-a; sinto orgulho por perceber que amo alguém que agrada o olhar e desperta desejos e que não está com qualquer outro; está comigo.
Compreendo que qualquer um se sinta lisonjeado por ser admirado e provoque que isso aconteça, É comum "jogar charme" pra mulher de outro, até na presença dele, sorrateiramente, só pra sentir o prazer da correspondência, mesmo sem intenção de tê-la, desfruta-la. Sentir que somos observados, principalmente com admiração e despertando desejo, é um carinho gostoso pro ego de qualquer um. Na grande maioria das vezes, não vai passar disso: chamar a atenção para ser admirado e curtir o prazer de ter conseguido.
Mesmo sabendo do risco, sempre dominei o ciúme e procurei não impedir o prazer de ser admirada e sempre considerei que a provocação feita por minha mulher, não passasse de intenção de despertar admiração. Sendo bonita, e muito, é natural receber elogios e cantadas, mas optei por confiar nela e em mim, no que representava pra ela. O ciúme cutucava, sempre que a via cuidando da aparência, dizendo-lhe que ficava mais provocante, aumentando a possibilidade de ser desejada, de ser "cantada" e de acabar cedendo, traindo-me ou indo embora. Continuo preferindo o desafio que me faz sentir que ela está comigo porque quer, porque lhe agrado e não por força de restrições ou qualquer tipo de pressão.
Mas o ciúme é malvado, cruel; sabendo que minha racionalidade é forte, apela para meu emocional. Coloca em minha imaginação cenas que me machucam o coração: suas calcinhas, seus seios sendo acariciados por outras mãos, sua boca sendo invadida por outra língua, seu olhar mostrando desejo e admiração por outra pessoa. Por que, ciúme, por que você tem que existir e ser tão cruel? Por que você não deixa que o amor seja desfrutado com ardência e que a ausência dele seja só um não ter. Por que tanta destruição, tanta maldade? Por que?
O ciúme não se contenta só com os enormes estragos que causa, empenha-se pra conseguir a ajuda da auto-estima, fazendo o atingido sofrer, por ser motivo da chacota alheia, mesmo que só na imaginação. Maldito ciúme!
Passei a maior parte do dia escrevendo a análise da empresa, do seu funcionamento, do comportamento das pessoas. Reunião com os donos, até a noite. Não tive tempo de pensar muito nela. Conclui que o problema principal da empresa é emocional. Que ironia! Eu declarando isso pra eles, escondendo o meu estado emocional. Não dá pra falar. Não entenderiam! Emocional impedindo o racional, é o problema deles. Razão não podendo conter a emoção, é o meu.
A emoção segue me forçando a ter raiva. De que?
Estava combinado. Havíamos combinado que seria assim. Quem se apaixonasse ou tivesse outra relação, avisaria.
Egoísmo? Quem não tem?
Perder a felicidade por causa de outra pessoa? Difícil!
Sigo carregando minha cruz, sozinho.
Até quando vai durar esta agonia?
Sei lá!
O telefone toca, o coração dispara. Decepção. Não era ela.
À noite tive um pouco de fome. Estou sem sono.
Pensei mil vezes ligar pra ela. Achei que não devia.
Estará bem mesmo?
Não consigo parar de pensar que pode estar magoada comigo.
Idiota, eu? Talvez.
Acordei a meia noite. Voltei a dormir por volta das 3:30.
Sou o novo responsável pela laminação, um setor da fábrica. Esperança profissional.
O telefone não toca. A angústia maltrata.
À noite, o telefone toca. A filha mais velha informa que foi aceita para o doutorado. Alegria...choro...tristeza. Farofa de vida!
Dormi pesado. Muito trabalho ajuda a não sofrer tanto.
O seu egoísmo, ao não me ligar, está me fazendo considerar que, talvez, não mereça tanto sofrimento que sinto.
Dormi mais ou menos. É sábado, oito de fevereiro. Trabalhei até as duas e meia da tarde.
Senti muito sua falta. Não será a mesma coisa. Acho que me desconsidera. Talvez não. Luta difícil: razão versus emoção. A emoção deveria ter botão, interruptor, chave...sei lá! Alguma coisa que pudesse desliga-la.
Não tê-la, dói! Saber que outro a tem, dói mais. Não devia. Sabê-la feliz, deveria ser bom. Querer o bem de quem se ama é o razoável. Mas, a emoção é egoísta. É isso...egoísta! Não quer perder. Como não pode dominar os outros, vinga-se no seu possuidor, Não podendo agredir a quem ama, agride quem ama; maltrata, machuca, não dá sossego, enche a imaginação, não dá trégua. Maltrata, machuca.
Baixaria. Por que não aceitar numa boa que acabou pra você? Que começou pra outro. Que sorte a dela, não precisar sofrer, sair de um amor pra outro, só curtir, só prazer, sem sofrer.
Sono conturbado! Sonhei com ela...dois sonhos. Me senti fraco, idiota, bobajando, afastando-a de mim, empurrando-a pra ele, sem querer, totalmente idiota, sem controle, fazendo tudo errado.
A angústia voltou. Segue a tentativa da emoção pra denegri-la. Não admite perder. Como algo tão ruim pode fazer parte de mim? Faz...confesso. Não me dá sossego, quer que a condene. Não posso! A racionalidade me obriga a entender, mas não consegue me ajudar a expulsar a emoção vingativa pra longe.
Nada de fome. Angústia forte. Que dizer aos amigos e colegas? A maravilha descrita, não vem?
Não a tenho. Não a perdi. Não sei...
À tarde, angústia menor, lógica mais forte. Ela é voluntariosa, luta pelo que quer, com unhas, dentes e manhas. Conheci o que foi capaz de fazer pra ficar comigo. Quer dizer: pra fazer o que queria. Por que seria diferente agora? Tem que ir atrás. Tem que lutar. Tem que conseguir. Tomara que tenha que voltar. Tomara que continue assim: lutando pelo que quer, sem correr pra trás por medo, aceitando menos pra conseguir mais. Durou até aqui porque eu era o que queria. Apareceu algo mais, ela não titubeou, correu atrás. É ela! Que continue sendo.
Continuo sem fome. Infelizmente a opinião alheia importa, incomoda. Quem quer passar por coitado, bobo, trouxa, idiota, tonto? Acaba sendo menos ruim passar por safado, cafajeste e outros adjetivos pejorativos, elogiantes.
Dormi pesado. Ela apareceu, saindo do banho, toalha tampando em cima, mostrando embaixo.
Cedo, melancolia Em cabeça ocupada a emoção tem dificuldade pra agir. Saudade, como cê dói! Maltrata o coração, faz o corpo padecer, sofrendo a emoção. Estou cansado, sem sono. Tento lembrar que foi bom mas a emoção não deixa, interfere na lembrança: "Fiquei com um menino". Agora ele está tendo o que já foi teu! Machuca e corrói por dentro. Não deixa que me lembre, curtindo o que foi bom. Maldita emoção! Deixe a mim e a ela em paz!
Diego considerou a possibilidade de ela estar dominada pela emoção; tendo dificuldade para racionalizar. Imaginou que isso poderia impedir que analisasse suficientemente o que estava acontecendo, optando pelo que fosse melhor a longo prazo e não se deixar levar por uma emoção passageira. Decidiu que deveria alerta-la para isso e, como estava tendo dificuldade de manter-se controlado quando falava com ela, escreveu o que pretendia dizer-lhe, para ler para ela quando telefonasse.
Escreveu, releu e verificou que era aquilo mesmo que queria dizer. Dobrou o papel, colocou-o no bolso e ficou esperando ansiosamente, que ela me ligasse, à noite, pra lhe comunicar o que estava pensando. Nem imaginou que ela fosse ligar na hora do almoço. Quando o telefone tocou e ouviu que era a cobrar, o coração disparou a voz embargou e automaticamente pegou o papel.
Era ela mesma. Depois dos cumprimentos, ele lhe disse que precisava lhe dizer uma coisa. Que iria ler o que havia escrito, para evitar que a emoção confundisse o que pretendia lhe dizer.
Depois de ler e acreditar que ela tinha entendido, ele ficou mais aliviado.
Ela falou que, nos dois últimos encontros com o rapaz, aconteceram alguns problemas, Ele ficou mais aliviado, afinal estava certo, se em menos de um mês já começaram os problemas, imagine o que acontecerá num tempo maior. Quando lhe perguntou se ela voltaria para ele e ela confirmou, quase desmaiou de tanta emoção . Sabia que não era definitivo, mas para quem não tinha mais nenhuma esperança, a possibilidade já era um verdadeiro milagre.
Sentiu-se entrando no paraíso, saiu de uma tristeza profunda e mergulhou numa felicidade sem tamanho, indescritível. Começou a pensar que o amor dela por ele, já não seria o mesmo, que talvez não tivesse sobrado absolutamente nada. Sentiu alguma melancolia, mas ainda estava feliz. Poderia não tê-la como mulher, mas teria como amiga e teria oportunidade de vê-la alcançando o sucesso, que sempre achara que teria, e sentiria orgulho de poder ter ajudado que ele acontecesse.
Ele perguntou se ela tinha conseguido retirar o dinheiro que ele mandara. Ela disse que não, que o banco não acusava o depósito. Ele perguntou se estava precisando de dinheiro. Ela disse que tinha assumido o compromisso de pagar uma compra de mantimentos que a mãe fizera. Ele perguntou o valor necessário. Ela disse que era mais ou menos em torno de duzentos reais. Ele prontificou-se a enviar-lhe o necessário, pedindo que ela conseguisse uma outra conta bancária, para não ocorrer o risco de acontecer o que havia acontecido com o depósito feito anteriormente. Ela lembrou-o de que tinha um cheque que ele lhe havia dado, quando saíra de São Paulo, para necessidades inesperadas; perguntando-lhe se não poderia usá-lo. Ele concordou, dizendo que teria fundos até o valor de duzentos e cinqüenta reais. Ela comentou que não tinha dinheiro nem para comprar anticoncepcionais. Ele perguntou espantado: -"Você está trepando sem prevenção contra gravidez?" Ela respondeu: "- Quem te disse que estou fazendo isso?". Ele considerou que ela dissera isso para poupá-lo, aliviar-lhe o sofrimento de sabê-la desfrutando prazeres sexuais com outro. Não deu importância a isso, estava felicíssimo pela possibilidade de ter a companhia dela novamente e isso era o que importava, o resto era só detalhe.
ELA
Ela desligou o telefone, prometendo ligar breve. Seguiu em direção à casa do avô. Chegaram, conversaram durante algum tempo com a tia (aquela que estava separada do marido e que estivera interessada no Diego), que se mostrou insatisfeita com o que estava acontecendo. Disse que o Diego havia ligado e que ela o havia aconselhado a tomar alguma providência no sentido de tirar-lhe o carro, impedindo que ela continuasse circulando com seu novo homem, desfrutando do conforto de um veículo que não era seu. A mãe dela convidou a cunhada para o casamento e esta disse que, se no dia estivesse disposta, iria; caso contrário pensaria na possibilidade de enviar um presentinho, A mãe dela ficou brava e disse que era pobre, mas que não precisavam de esmola. Justificou que a filha não dizia nada por ser uma tonta, incapaz de defender-se, que por isso todos faziam o que queriam dela, aproveitando-se dessa característica pacata e calma.
O avô acercou-se e perguntou pelo Diego. Ela disse que estava trabalhando em Campo Grande. Ele deu-se por satisfeito e saiu novamente para o quintal. Elas saíram e foram embora.
Pegaram a estradinha e saíram em direção à casa do cunhado. No caminho, passaram na casa da outra tia, aquela a quem estivera ajudando durante a gravidez. Convidaram-na para o casamento e esta demonstrou que não era o que gostaria que acontecesse, mas, sendo madrinha dela, aceitaria a sua decisão e compareceria ao casamento. Saíram de lá e foram para a casa da irmã, onde dormiram aquela noite.
Não fosse suficiente o que estava passando pela perda da mulher que amava; Diego enfrentava sérios problemas no trabalho.
Havia sido convidado por um amigo, sócio de uma empresa, para tentar identificar as causas de vários problemas que estavam acontecendo na sua unidade industrial.
Era uma empresa familiar cujos sócios eram todos irmãos. O amigo de Diego que o convidara para o trabalho, cuidava, com um dos irmãos, da parte comercial e de um depósito que ficava em São Paulo. Os outros três irmãos, administravam a fábrica em Campo Grande.
Depois de passar alguns dias observando o funcionamento da empresa, Diego percebera que a fábrica era bem estruturada fisicamente, com equipamento moderno e eficiente, com um quadro de funcionários de qualidade e com uma frota de caminhões suficiente para atender as necessidades de transporte. No entanto, acontecia uma série de problemas, que, ao que tudo indicava, eram causados pelos diretores, sócios da empresa; e por um funcionário que não tinha uma função específica e que atuava em vários setores; principalmente na implantação do sistema informatizado que estava sendo efetuado por um profissional free lancer.
Diego informou aos diretores que necessitava conversar com eles, para informa-los do já havia observado e obter deles informações que lhe permitissem aprofundar a análise. Eles concordavam que essas conversar eram necessárias mas iam postergando-as. O tempo foi passando e as conversas não aconteciam. Tudo indicava que os diretores estavam fugindo delas.
Enquanto aguardava que as conversas pudessem acontecer, Diego detalhava as observações já feitas e procurava ajudar no que podia nos serviços da fábrica. Ele conversava com funcionários e encarregados, buscando informações e reiterando que sua função, ali, era a de ajudar a melhorar o sistema de trabalho na empresa, que sabia que os problemas existentes não eram de responsabilidade dos funcionários, que era um trabalho temporário e que, quando concluído, ele iria embora. Afirmava isso para mostrar que não representava qualquer perigo para os funcionários, principalmente para os com cargo de chefia que poderiam sentir-se ameaçados.
Aquele funcionário sem função específica, mas que gravitava por todos os setores; ia confirmando com ações e conceitos, o que Diego desconfiava: de que ele era uma das fontes dos problemas naquela indústria. Ele já morava na casa em que Diego se alojava desde sua chegada; que era de propriedade da empresa e que ficava numa espécie de chácara, nos fundos do grande terreno onde também estava instalada a fábrica.. No começo, conversavam bastante fora do horário do expediente; tanto em casa, como em mesas de bar onde costumavam ir tomar cerveja.
O rapaz não economizava críticas a tudo e a todos da empresa. Criticava principalmente os diretores. Diego reconheceu-lhe a inteligência e várias habilidades e conhecimento que ele tinha.
Nessas conversas, ele revelou vários detalhes do funcionamento da empresa que Diego gastaria um bom tempo para identifica-los sem as informações dele. No entanto, Diego não demorou em perceber que a maior motivação do rapaz para as críticas que fazia, eram causadas por ressentimentos, por se considerar desprestigiado e, principalmente, por considerar-se desvalorizado em relação à capacidade que acreditava possuir.
Diego verificou, e disse-lhe abertamente, que ele estava sendo sub-aproveitado, considerando a capacidade que demonstrava ter. Que, provavelmente, isso estava acontecendo por causa da falta de uma função específica, impedindo que percebessem seu verdadeiro potencial. Dizia que estava observando isso e que pretendia acusar esse problema quando tivesse oportunidade de conversar com os diretores.
No entanto, Diego percebeu, desde o começo, que o rapaz era de uma prepotência e arrogância muito grandes. Reconhecia-lhe inteligência e capacidade, no entanto, estavam muito aquém do que ele acreditava possuir. Não é que fossem pequenas; é que ele se acreditava inteligente e capaz, muito além da realidade.
As observações foram mostrando a Diego, que o objetivo do rapaz era galgar cargos na empresa, que lhe propiciassem bom rendimento financeiro e, principalmente, status. Que se empenhava totalmente nesse objetivo, deixando em segundo plano a contribuição que poderia dar para a solução dos problemas existentes. Diego pode verificar em várias ocasiões que o rapaz era capaz de atropelar quem quer que fosse para conseguir seus objetivos, sem escrúpulos para limitar suas ações.
Quem transformava os pedidos para linguagem técnica de produção, era o filho de um dos sócios. Ele e o rapaz pareciam bastante amigos e viviam brincando um com o outro. Era comum que o rapaz se encarregasse de encaminhar os documentos técnicos preparados a partir dos pedidos, para a produção.
Certa vez, o responsável pela transcrição dos pedidos, cometera um erro grosseiro, ocasionando a perda do material fabricado. O rapaz, ao encaminhar o pedido para a produção, havia percebido o erro, mas não o acusara. Daniel, conversando com o funcionário que dera início à fabricação daquele material, ficou sabendo que este alertara o rapaz para o erro e que ele ordenara o início da produção, alegando que o responsável pelo erro pagaria por ele posteriormente. Diego foi descobrindo que essa não fôra a primeira nem a última vez que o rapaz agira dessa maneira, aproveitando erros alheios para embasar suas críticas, sem dedicar o mínimo esforço para colaborar na prevenção e saneamento.
Se no início o rapaz não perdia oportunidade de conversar com Diego, com o passar do tempo passou a evitá-lo e, posteriormente, a não perder oportunidade de hostilizá-lo. A situação chegou a tal ponto que Diego começou a se sentir um verdadeiro intruso naquela casa que dividiam.
Na Quinta-feira, 26 de fevereiro, Mary foi até a cidade, com a tia, procurar uma rezadeira. Sentia necessidade de ajuda, sentia-se agoniada por estar sendo guiada para um futuro que não queria, com o qual não concordava. Não tinha sentido viver ao lado de alguém por quem não sentia a menor atração, que repudiava a maneira de ser e, principalmente, de pensar. Alguém que tinha conceitos totalmente opostos aos seus. Como poderia casar com alguém assim? Muito menos dividir uma vida com ele!
Pensava no seu amor, na emoção que os unira, na intimidade física, emocional e conceitual que tinham. Tendo conhecido aquilo, como poderia aceitar isto? Não tinha o menor sentido.
Voltar para seu amor? Era o que mais queria! Mas como? Ele não a aceitaria mais, sabendo que ela pretendera troca-lo por outro. Não acreditaria que tudo acontecera alheio a sua vontade, que ela fôra levada àquilo por forças ocultas, sem consciência do que acontecia e fazia. Quem acreditaria nisso? Quem acreditaria que uma mulher acostumada à prática sexual, se negaria a praticá-lo com o homem com quem se casaria em menos de dois meses? Não! Seu amor, nem ninguém, acreditaria nisso. Portanto, ele não a perdoaria, não a aceitaria de volta. O que fazer? Como agir? Estava confusa...não sabia o que fazer...como agir...como resolver aquela situação. Pensava tudo isso, mas sentia-se confusa, não conseguia raciocinar com clareza, como se tivesse um véu sobre o cérebro que impedia a linearidade do raciocínio. Pensava truncado, em segmentos, sem concatenação. Uma coisa não se ligava a outra. Pensava na situação em pedaços, como se cada um não tivesse nada a ver com outro. Sabia que não poderia casar, o quanto aquilo era esdrúxulo, sem sentido nem cabimento. No entanto não conseguia dizer não, por um fim naquela situação, livrar-se daquele pesadelo. Por isso resolvera procurar a rezadeira, quem sabe ela poderia mostrar-lhe uma maneira de reassumir sua identidade, de enfrentar a situação e soluciona-la.
Chegaram na casa da rezadeira e foram recebidas por ela. No entanto, a rezadeira alegou não poder atendê-la por causa da menstruação, que ela voltasse no final desse período. Além da tristeza e da confusão mental, agora experimentava a revolta. Não bastavam os incômodos físicos que a menstruação lhe causava, ainda tinha que impedi-la de receber ajuda exotérica, espiritual ou qualquer coisa que o valha!
Sem conseguir a ajuda pretendida, rumou para a próxima cidade, onde pegaria o vestido de noiva que deixara para lavar e ajustar. Esse fôra o pretexto usado para ir até a cidade.
Pegou o vestido da maneira que o deixou, uma vez que ficara de confirmar se o serviço deveria ser executado, o que não fizera.
No final da tarde, já estando na casa da mãe, foi chamada por um conhecido que morava nas redondezas, muito religioso e reconhecido como sensitivo, leitor da sorte, adivinho e coisas do tipo. Disse que tinha tido uma revelação a respeito dela, uma espécie de aviso, de que ela deveria buscar ajuda para livrar-se do mal que a afligia. Ela quis saber como, a quem ou o que procurar. Ele disse não saber. Que sentira algo muito forte que o impelira a procura-la e dizer-lhe que passaria por problemas, que deveria rezar e pedir uma revelação. Que precisava buscar ajuda, No entanto, não sabia como orientá-la. Que ela pedisse uma revelação e que, esta, a orientaria. Terminou dizendo que usara um pretexto para procura-la: alegando que havia combinado de fazer uma viagem para uma pessoa e que, provavelmente, não poderia realiza-la, por isso a procuraria para pedir-lhe que a fizesse em seu lugar. Que, se alguém questionasse sobre o motivo de ele tê-la procurado, que ela confirmasse o que ele alegara. Despediu-se e foi embora.
Ela ficou cismada. Por que alguém ou alguma coisa usaria aquele homem para avisá-la de algo assim? Quem deveria procurar? O que fazer?
Lembrou-se do homem que aparecera, quando ela era criança, por volta dos doze anos, e pegando sua mão havia feito previsões sobre seu futuro. Até ali, suas previsões tinham se confirmado. Lembrou-se que ele dissera que aos vinte e dois anos, algo iria acontecer e que ele pretendia encontra-la depois disso. Será que era a ele que deveria procurar? Mas, onde? Não o conhecia, não sabia onde morava, nem ao menos se ainda estava vivo!
Passou a noite agitada, pensando no aviso recebido e onde buscar ajuda. No dia seguinte, seu irmãozinho amanheceu doente, com febre e chorando muito, com a boca bastante ferida. Levou-o ao hospital em São Bento do Sapucaí. Ele foi consultado e medicado. Voltaram para casa. Era sexta feira de carnaval mas não parecia, nenhum movimento na cidade indicava isso ou ela não percebera, nem lembrara que estavam nessa época. A cabeça continuava confusa: sabia o que não queria; sabia o que queria mas não conseguia agir, organizar uma ação, planejar o que deveria fazer. Pensava que o rapaz não aceitaria o rompimento do noivado. Ele, desde o início, se considerava dono dela; só se conformava com a falta de intimidade e o repúdio dela porque acreditava que, após o casamento, ela não poderia negar-lhe mais nada, teria que comportar-se como ele quisesse, fazer o que ele desejasse. Não aceitaria perder o direito de dominá-la, doma-la, mostrar a ela e a todos quem é que mandava. Não era uma questão de amor e sim de amor próprio, de machismo, de sentir e demonstrar a superioridade masculina, deixar claro quem deve mandar e quem tem que obedecer, acreditando que o casamento é um laço bem trançado e forte, capaz de prender a mulher, permitindo que o homem a monte e esporeie até que ela compreenda que a única alternativa é a submissão, obediência, parar de espernear e corcovear e aceitar o cabresto, tornando-se dócil e submissa.
Na volta da cidade, deixara o carro na casa da avó e voltava para a casa da mãe quando encontrou o homem que lhe transmitira a premonição que tivera. Ele disse-lhe que tivera outra premonição, que ela teria mais um problema a enfrentar. Ela comentou a estranha doença do irmãozinho e ele concordou que isso poderia ser o que a primeira premonição colocava como o problema que deveria acontecer. Que se preparasse pois havia mais problema pela frente.
No dia seguinte, sua mãe amanheceu com febre e muita dor de cabeça. Outra vez a premonição do homem se confirmava. Poderia ser coincidência mas ... era muita coincidência.
Diego estava na fábrica, comandando uma turma de operários, organizando um estoque de material que estava espalhado; quando um dos diretores o procurou e o interpelou sobre os resultados de suas observações. Ele disse que estava aguardando a oportunidade de expô-las e de complementá-las com informações que esperava conseguir conversando com os diretores; o que ainda não fora possível.
O diretor que o interpelou, comunicou-lhe que convocaria uma reunião para aquela tarde, onde ele deveria expor o que já apurara. Pediu que ele lhe adiantasse alguma coisa.
Diego lhe disse que não encontrara maiores problemas na estrutura física da fábrica, nem nos equipamentos, nem nos operários. Que acreditava que a causa preponderante para os problemas era emocional, oriundo no relacionamento entre as pessoas.
Na hora combinada, na sala de reuniões onde estavam os três sócios diretores e os encarregados tanto da fábrica quanto do setor administrativo; o diretor que interpelara Diego, deu início à reunião, dizendo que o Diego iria expor o que observara até ali e que, de ante mão, declarava sua concordância com o que ele iria expor.
Diego estranhou aquela declaração de apoio, antes mesmo que tivesse exposto o conjunto de observações que o levaram a identificar aquela possível causa. Começou enumerando os problemas de que tivera conhecimento, as investigações realizadas, as observações feitas, a análise dos dados e as conclusões provisórias a que tinha chegado. Acusou que a maioria dos erros se originaram em problemas emocionais, gerados nos funcionários por atitudes e comportamento dos diretores, propiciando um ambiente de medo e apreensão.
Ao final da exposição, o diretor presidente foi o primeiro a somar a sua à concordância que o primeiro havia declarado antes do início da reunião. O terceiro diretor também concordou com o diagnóstico.
No final da reunião, o presidente convocou Diego à sua sala onde lhe comunicou que seria efetivado na empresa e combinaram um salário para um período de experiência efetiva. Disse-lhe que o convocaria nos próximos dias para discutirem o procedimento a ser adotado, objetivando as correções necessárias.
Vários dias se passaram sem que Diego tivesse sido convocado para a reunião combinada. Ele procurou o presidente e lembrou-lhe a necessidade de estabelecerem o procedimento para dar início às correções necessárias. Ele alegou que estivera muito ocupado e que, por isso, não pudera convoca-lo, mas que o faria o mais breve possível.
Diego reiterou a necessidade de por fim, o mais rápido possível, no verdadeiro clima de pânico que assolava muitos dos funcionários, por medo de serem despedidos. A ameaça de demissão era a arma mais usada pela diretoria, imaginando que isso propiciaria que os funcionários se empenhassem para fazer o melhor possível. No entanto, o medo de errar e de suas conseqüências, estavam sendo a maior causa dos erros cometidos por eles.
O presidente disse concordar com ele e prometeu marcar a reunião para acertar os detalhes o mais breve possível.
Mary sentia-se cada vez mais confusa. Oscilava entre momentos de consciência e de alienação. Começou a crescer nela a necessidade de conversar com Diego, sentindo que só ele poderia ajudá-la.
Quando a tia pediu a ela que a levasse até a cidade para uma consulta ao dentista, ela só pensou na possibilidade de ligar para Diego, sem ninguém ficasse sabendo que o fizera.
Ao chegar na cidade, deixou a tia no consultório e dirigiu-se a um telefone público. Ligou para seu amor. Ele não estava, não fôra almoçar em casa. Acentuava-se o sentimento de frustração, derrota, abandono, fraqueza, impotência, em fim, estava desolada! Que fazer?
Pensou em ligar para o telefone celular dele, mas não poderia fazê-lo a cobrar. No entanto, não tinha dinheiro para comprar um cartão telefônico.
Sem outra alternativa, voltou ao consultório e pediu à tia que lhe emprestasse o dinheiro necessário. Não pretendia que alguém soubesse que pretendia ligar para o Diego, mas teve que confessar isso para a tia, quem a pressionou a declarar para que queria o dinheiro.Comprou um cartão telefônico e ligou para o seu amor, queria avisa-lo que lhe ligaria no dia seguinte. Por que? Não sabia. Sentiu necessidade de ligar. Sabia que o tempo de ligação permitido por aquele cartão seria muito pequeno, que não poderia falar muito, que teria que ser rápida. Não importava, ligaria assim mesmo. Pra dizer o que? Não sabia.
Ligou. Ele atendeu e, adivinhando que a ligação seria muito curta, passou-lhe seu novo telefone, da casa que alugara e onde passaria a viver a partir daquele dia. Só teve tempo de anotar o número do telefone e dizer que ligaria no dia seguinte na hora combinada e o tempo se esgotou, emudecendo a ligação. Sentia-se muito mal, desamparada, perdida.
No dia anterior, dia cinco de março, Diego ligara para o telefone público do bairro onde o pai dela morava. Pediu que o chamassem mas ele havia ido à missa pois era quarta feira de cinzas e ele, como católico praticante, não poderia deixar de participar da cerimônia. Pediu a quem atendeu o telefone que anotasse o número de seu telefone e que pedisse a ele que lhe ligasse.
Diego ligara para saber de sua saúde, pois era diabético e vivia tendo crises.
No dia seguinte, o pai dela ligou, no final da tarde. Disse da sua revolta pelo que a filha estava fazendo. Afirmou, com grande veemência, que ele não a considerava mais sua filha. Sua revolta era tremenda!
Diego recomendou-lhe calma. Disse-lhe que ela lhe ligara naquela tarde, mas que não tivera tempo de dizer o que pretendia. Que ficara de ligar no dia seguinte e que, se ele quisesse saber o que ela diria, ligasse no dia seguinte.
No dia sete de março, ela ligou na hora de costume. Disse que havia atropelado um menino no caminho para a cidade, que a irmã estava com ela, que estava muito nervosa e preocupada. Levara o menino para o hospital e, agora, ia procurar a polícia.
Ele ficou preocupado e quis saber mais sobre o estado dela, como se sentia. Ela disse não ter tempo para falar. Que tinha muitas perguntas para fazer e muito que falar mas que não poderia ser agora. Quem sabe, numa outra hora qualquer. Ele ficou com a impressão de que nada mudara em relação a eles.
No final da tarde, o pai dela ligou para ele, que lhe contou a conversa que tivera com ela. Disse-lhe que tudo continuava como antes, que era preciso ter paciência e esperar o resultado do desenrolar dos acontecimentos.
No dia seguinte, sábado, oito de março, ele trabalhava em casa quando, por volta das onze horas da manhã o telefone tocou. Era ela, que começou dizendo:
- Deixa eu te falar uma coisa: Cê não vai brigar comigo?
-Depende
-Você deve estar com vontade de me matar né?
-Um pouco
-Você ainda quer que eu volte?
-É só o que eu quero.
-Você tinha falado que queria ser meu amigo. O negócio aqui tá feio, se for possível a agente recomeçar como antes, é claro que seria muito melhor, mas se você não quiser, gostaria de ficar um tempo com você, mesmo como amiga porque aqui não dá mais. Você sabe que quero continuar estudando e ele não vai deixar. Além do mais, tem você, que não consigo esquecer
-Quando você quer vir?
-Quando você puder vir me buscar.
-Se quiser, pego o ônibus hoje e nos encontramos em São Paulo amanhã.
-Amanhã a Vó vai ser internada, então eu preferia que fosse no sábado que vem.
-Tudo bem. Saio daqui na sexta-feira á noite e nos encontramos no sábado.
-Vou ter que dar um jeito de arrumar o carro, pois, como te falei, quando atropelei o menino, quebrou o farol e amassou um pouco a lata. Pediram cento e oitenta reais pra arrumar.
-Você não está com cabeça pra fazer isso agora. No sábado você pega teu Pai, ele arruma o dinheiro para viagem, vai com você até São Paulo, dou o dinheiro a ele, o colocamos no ônibus e ele volta, sem problemas.
-Tá bom.
-Você já falou pro rapaz da sua decisão?
-Falei. Hoje, com certeza, ele vai aparecer mas tá decido.
-Se eu fosse você, iria para a casa da sua irmã. Esse lugar é maldito pra você e principalmente, agora, com essa decisão, as coisas vão ficar difíceis.
-Vou acertar tudo aqui e no sábado agente se encontra.
-Tudo bem. Agente vai ser feliz pode até ser melhor que antes. Afinal vivemos uma experiência muito sofrida.
-Com certeza. Você está feliz?
-Muito! Eu te amo.
- Eu também te amo, te adoro. Só espero poder voltar a merecer você.
-Não deixe de me ligar. Você sabe como é importante pra mim.
-Ligo sim. Depois a gente combina o resto.
-Tá bom.
-Um beijo, te amo
-Outro.
A noite de sete para oito de março parecia não ter fim. Lembranças do atropelamento, do menino caído, do choro, dos gritos de dor. A visão do hospital, da perna do menino inchando. A vontade de se livrar daquele compromisso absurdo, voltar pro seu amor. Como? A noite parecia ter estacionado. Um minuto era suficiente para mil pensamentos e ainda sobrava tempo. Tempo...Quantas vezes ele fôra insuficiente, acabara antes do planejado, impedindo um desfrute maior, a conclusão de algo. Agora, se arrastava, tão lentamente que parecia parado. A cabeça fervia, parecia ocupada por um novelo de lã embaraçada, escura. Cada pedaço daquele fio representava uma lembrança, uma preocupação, impedindo o funcionamento do raciocínio. Ele tentava agir mas não conseguia se livrar daquele emaranhado que impedia sua ação. Quando conseguia cochilar alguns minutos, tinha pesadelos que pareciam durar uma eternidade. As primeiras luzes daquele sábado encontraram-na na pior confusão mental que pode acometer a cabeça de uma pessoa.
Com a chegada do novo dia, apareceu um raio de luz, insistente, confuso. Dizia-lhe que precisava buscar ajuda, urgente, havia chegado a hora.
Buscar ajuda onde? como?
Levantou-se como que empurrada por uma força misteriosa. Preparou-se e saiu em direção da casa da avó, onde deixara o carro. Ao chegar lá, encontrou a tia que, sem mais nem menos, se prontificou a acompanha-la. Pegaram o carro e saíram.
No caminho a tia lhe perguntou sobre o destino da viagem. Ela disse que precisava encontrar alguém. A tia perguntou: -"Quem?" Ela disse não saber, mas que precisava encontrar alguém.
A única pessoa que lhe ocorreu procurar, foi um homem que lia cartas e interpretava o que elas diziam. Nunca acreditara nisso mas, agora, era o seu objetivo, o único que conseguia ver. Não sabia porque, mas sentia que tinha que procura-lo. Uma força a dirigia para ele. Não sabia o porquê, só a sentia.
Chegaram e foram recebidas pelo homem que, consultando as cartas, disse-lhe que não poderia ajudá-la objetivamente, mas que conhecia alguém que poderia fazer isso. Era um Pai de Santo, a quem ela deveria procurar. Deu-lhe o endereço e explicou-lhe como chegar lá.
Era um bairro muito pobre, uma espécie de favela. Depois de perguntar, foi informada que o "macumbeiro" morava numa ruela, num barraco.
Chegaram. A tia, assustada, não quis entrar. Uma mulher negra, gorda, atendeu-a e disse-lhe que estavam a sua espera. Que ficasse calma, que iriam ajuda-la. Que se sentasse e esperasse um momento.
Logo apareceu um homem, negro também, vestindo roupas muito gastas. Cumprimentou-a, perguntou à mulher que vestimenta deveria usar. Ela indicou-lhe uma de cor branca, que estava pendurada em um prego na parede de madeira.
O homem pegou a vestimenta, entrou em outro cômodo e, logo depois, voltou vestindo a roupa branca. Ela estava assustada mas disposta a seguir em frente. A mulher negra e gorda procurava tranqüilizá-la. Depois de um curto ritual, o homem incorporou uma entidade que se dizia baiano, pediu um cigarro e um gole de bebida. Disse ter vindo de uma praia da bahia.
Dirigiu-se a ela dizendo que seu problema seria resolvido, que seu caminho estaria livre para fazer a viagem que pretendia fazer. Que o casamento marcado não se realizaria e que o noivo não criaria nenhum problema. Que ela só teria que esperar um sinal seu. Que ele apareceria para ela, em sonho, comunicando-lhe que o caminho estaria livre. Que não fizesse nada antes desse aviso. Adivinhando o pensamento dela disse: -"Pode fazer a ligação que está querendo fazer. Depois espere meu sinal."
Ela se despediu e saiu. Não lhe cobraram nada. Tudo aconteceu como se uma força maior tivesse dirigido tudo, como se todos não passassem de marionetes manipulados por um poder extraordinário e com objetivos desconhecidos. Um mistério indecifrável, com causas e objetivos além do alcance da capacidade humana.
Com o coração aos solavancos dirigiu-se a um telefone e ligou para o seu amor. Sentia-se aliviada, como se tivesse se libertado de uma maldição. Temia ser rejeitada, ao mesmo tempo que tinha esperança no amor dele, na sua compreensão. Os dedos trêmulos digitaram o ddd de Campo Grande e o número do telefone dele.
Ao voltar para a casa da mãe, encontrou o rapaz a sua espera. Ao vê-lo, foi tomada de verdadeiro pânico. Pensou em qual seria a reação dele ao saber que o casamento não aconteceria. Imaginou que reagiria violentamente. Não descartava a possibilidade de que tentasse matá-la.
De repente, enquanto caminhava na direção da casa; sentiu uma calma incrível, como se uma grande claridade tranqüila a envolvesse. Pensou que se não pudesse reaver o seu amor, a morte seria bem vinda. Pensou em dizer ali mesmo, naquele instante, que não haveria mais casamento, que iria embora. O medo desaparecera completamente, sentia-se segura e absolutamente consciente de que preferia a morte a continuar vivendo sem o seu amor.
Quando se aproximou da porta da cozinha, onde o rapaz estava ao lado, como uma estaca que estivesse cravada no chão, disposta a acabar com tudo; lembrou da recomendação do pai de santo, de que deveria esperar um sinal seu para agir. Passou por ele, atravessou a cozinha e entrou no banheiro.
A mãe dela bateu na porta e perguntou se estava passando mal. Ela disse que não, que estava tudo bem.
Considerou a situação e decidiu que seguiria a recomendação do pai de santo. Pensou que nem o rapaz, nem os parentes dela, tinham condição de entender o que estava acontecendo. Nem ela mesma sabia. Sentia que fôra outra pessoa que ocupara o seu lugar. Pensava no que tinha acontecido ultimamente e tinha certeza de que não fôra ela participando de tudo aquilo. Fôra tão absurdo o que acontecera, que não conseguia imaginar o que causara tudo aquilo.
Pensou em tudo o que tinha acontecido e tinha a impressão de estar assistindo a um filme, onde ela interpretava uma personagem estranha, que não tinha nada a ver com ela.
Pensou em como comunicar a todos que iria embora, que voltaria para o seu amor. Convenceu-se que ninguém entenderia, que seria total perda de tempo tentar explicar. Como explicar que não fora ela que participara de tudo aquilo? Tinha certeza disso, mas não via possibilidade de que acreditassem nisso. Decidiu não falar nada por enquanto. Pensaria mais a respeito e procuraria a melhor maneira de proceder.
Ao sair do banheiro ela verificou que o rapaz continuava no mesmo lugar em que o vira ao entrar. Ela tomou um gole de café, acendeu um cigarro e sentou-se ao lado do fogão de lenha. Logo depois o rapaz foi embora sem dizer nada, como aliás, era seu costume: chegava, ficava por ali e depois ia embora.
Na segunda-feira, como ainda não tivesse recebido nenhum sinal, aquele que o pai de santo lhe dissera para esperar, temeu que este não lhe fosse dado antes do final de semana, o que a impediria de viajar. O pai de santo fôra categórico nesse particular: não deveria fazer nada antes do sinal. Ela voltou a ligar para Diego. Desta vez, para dizer-lhe que, talvez, não pudesse ir embora no final de semana, como combinado. Não podia revelar-lhe a necessidade do sinal. Alegou que quando se encontrassem, contaria tudo. Que, por enquanto, confiasse nela, no seu amor.
Ele demonstrou uma certa desilusão. Depois de tudo o que havia acontecido, aquilo poderia ser indicativo de novos problemas.
Na noite de quarta-feira, ela teve um sonho, que lhe dizia que estava livre, que poderia procurar sua felicidade, que o caminho estava liberado.
Na quinta-feira, ligou para Diego, confirmando que poderia ir busca-la naquele final de semana. Mandou recado para que o rapaz viesse no final da tarde porque precisava falar com ele. Arrumou suas coisas, colocou-as em duas bolsas, colocou-as no carro, sem que ninguém percebesse.
Quando o rapaz chegou, no final da tarde, comunicou-lhe que não haveria casamento, que tudo aquilo fôra uma loucura e que, de certa maneira, estava lhe prestando um favor, pois ela estava muito longe de ser a mulher que ele esperava que fosse. Pediu desculpas e disse considerar que ele fôra vítima daquela loucura, que lamentava o que ele teria que passar, mas que seria melhor assim: acabar com tudo agora, evitando que o problema se agravasse.
Para sua surpresa, o rapaz não demonstrou qualquer reação, simplesmente foi embora.
Quando a mãe chegou da casa de uma irmã, ela comunicou-lhe que não haveria mais casamento, que iria embora e que não se despediria de ninguém para evitar problemas. Disse-lhe que não acreditava que eles pudessem entender o que acontecera, por isso se limitaria a dizer que não fôra ela que participara de tudo aquilo, que era como se algo se tivesse apossado se sua personalidade, agindo no seu corpo.
A mãe mostrou-se estupefata, acusou-a de estar louca, dizendo que não poderia fazer aquilo, que deveria se casar, mesmo que não quisesse, pelo menos para dar uma satisfação aos convidados.
Como ela já havia previsto, não era possível que aquele tipo de pessoas entendesse o que acontecera. Despediu-se em meio aos protestos, subiu no carro e foi embora para a casa da irmã, onde pretendia ficar até a hora de ir embora.
Ele decidiu que iria buscá-la ali, na cidade, ao invés de esperá-la em São Paulo; para evitar mais contratempos. Combinaram que ele chegaria no sábado pela manhã, no ônibus que vai direto de São Paulo para lá. Que ela lhe ligasse no celular dele, por volta das oito horas da manhã, para confirmar a hora da chegada. Depois dessa hora, o ônibus chegaria a uma região sem sinal para o celular, o que impedia qualquer comunicação. Que se encontrariam na estrada, onde o ônibus costumava parar, perto do centro da cidade.
Aproveitando que um sócio da empresa, que era de São Paulo e estava lá, e viajaria para São Paulo na sexta feira pela manhã, pegou carona e começou a viagem de recuperação do seu amor.
Chegou à casa de seus pais no final do dia. Imediatamente ligou para a rodoviária para informar-se sobre o horário em que o único ônibus que iria direto para Santana sairia, no dia seguinte. O telefone da rodoviária só dava sinal de ocupado e ele não conseguia a informação. Tentou até as vinte duas horas, quando conseguiu falar com a administração, que lhe informou que o guichê da empresa que pretendia consultar já havia encerrado o expediente do dia.
Ele sabia que o horário desse ônibus era entre seis e sete horas da manhã. Por isso, no dia seguinte, saiu as cinco e meia em direção à rodoviária.
No caminho, assaltava-o o pensamento de que o ônibus poderia estar lotado, impedindo-o de viajar nele, o que o obrigaria a fazer escala, atrasando sua chegada até ela.
Ficou aliviado quando verificou que havia lugar no ônibus. Comprou a passagem e, ansioso, esperou pela sua partida.
Na escala que o ônibus fazia, o relógio marcava oito horas da manhã, horário em que havia combinado para ela ligar-lhe. Esperou ansiosamente mas o telefone não tocou. O pressentimento de problemas lhe tomaram a mente durante todo o resto da viagem.
Ao chegar, verificou que ela não estava no lugar combinado. O coração saltava frenéticamente. Pensou que poderia ter viajado tanto, para nada. Tentou racionalizar na tentativa de estabelecer um critério para procurá-la. As casas da mãe e do cunhado, eram muito longe dali, o que requereria o uso de taxi e tempo. Optou por começar pela cidade, andando e procurando informações sobre se alguém a tivesse visto. Desceu uma ladeira que dava acesso da estrada à cidade e, na confluência com a primeira rua, viu um carro que poderia ser o deles. Animou-se e se dirigiu para ele. Ao se aproximar, verificou que não era e a desilusão o dominou novamente. Encontrando dois conhecidos na próxima esquina, aproximou-se para perguntar se a tinham visto, quando viu o carro deles e ela se aproximando.
Cumprimentou os conhecidos de onde estava e se dirigiu imediatamente para ela. Ela passou para o banco do passageiro, ele assumiu o volante e beijou-a. O contato físico, finalmente, desligou a verdadeira bomba que o dominava pela ansiedade e angústia.
Sofreu, emocionalmente, até o último segundo!
Ele perguntou se ela precisaria passar em algum lugar antes de irem embora, e ela disse que não. Que gostaria de ir o mais rápido possível!
Durante a viagem, ela foi contando o que havia acontecido, o que sentira e o que pensara. Ao ir tomando conhecimento do que realmente acontecera e do que ele não tivera qualquer informação, chorava copiosamente, sem parar, descarregando toda angústia que sentira nesse período, até o último segundo, quando não a encontrara como combinado e tivera que sofrer mais alguns minutos, como se eles fossem o saldo de uma dívida que tinha que pagar. Ela explicou a causa de não ter ligado para o celular como haviam combinado: Havia acontecido uma pane no sistema de telefonia da cidade e nenhum aparelho estava funcionando.
Passaram em São Paulo, na casa dos pais dele, onde tomaram banho e partiram novamente, com destino a Campo Grande, a uma nova vida.
Só pararam na Serra de Botucatu para fazer xixi, em Araçatuba para jantar e Andradina para dormir. Durante toda a viagem, não houve um único minuto de silêncio, conversaram o tempo todo, como se tentassem recuperar o tempo perdido, resgatá-lo, fazendo desaparecer todo o mal porque haviam passado. Ela contou o mais detalhadamente que pôde, tudo o que havia acontecido desde o dia que separaram até ali. Confessou que muitos pontos estavam obscuros e ela não se lembrava do que acontecera. Era como se tivesse uma visão através de um forte nevoeiro, que impedia identificar os acontecimentos.
A casa que Diego alugara em Campo Grande, não poderia ser mais simples e rústica. Ficava em uma esquina na última rua, do último bairro da periferia da Cidade. Os fundos da casa, eram voltados para o centro da cidade e na frente, olhando pela única porta de acesso, via-se um grande pasto, com algumas vacas e bezerros de um pequeno criador. As paredes eram de tijolos baianos, sem revestimento. O telhado, de telhas onduladas de fibro cimento, sem forro. O piso era de cimento queimado. Tinha um quarto, banheiro e cozinha.
Diego alugara aquela casa poucos dias antes de Mary ter-lhe dito que gostaria de retomar o relacionamento. Fizera-o porque a convivência na casa, que dividia com o rapaz da fábrica, estava insustentável por causa da hostilidade, velada, com que este o tratava. A casa era de um baiano velho, operário da fábrica e que tinha muita simpatia por Diego. Ele não imaginara que Diego se sujeitaria a viver numa casa tão simples e rústica como aquela, mas este só pretendia viver em lugar com um mínimo de liberdade, com o menor custo possível, que não exigisse burocracia para a contratação e que não tivesse compromisso de um tempo mínimo de ocupação, pois não acreditava que o trabalho naquela empresa se estenderia por muito tempo.
A mobília se limitava a um sofá velho e rasgado que o último inquilino deixara, um colchão de solteiro, uma mesa e duas cadeiras de plástico, um fogareiro de acampamento, uma espreguiçadeira e uma rede de dormir.
Mary e Diego viveram naquela situação por uma semana, até que suas coisas chegaram de São Paulo, trazidas por um caminhão da empresa.
Eles chegaram na cidade no domingo. Na segunda-feira, procuraram uma escola para que Mary cursasse o segundo grau e ela começou a freqüentar as aulas, no período noturno, no dia seguinte, em uma escola estadual, ao lado da casa deles.
No mês seguinte ela foi eleita representante dos alunos da classe e se dedicou intensamente a essa função. Enquanto não conseguia um emprego para trabalhar, dedicava-se intensamente aos estudos e a sua nova função na escola. A relação entre alunos e professores não era das melhores. Entre aqueles, havia alguns bagunceiros e entre estes, alguns relapsos. Ela assumiu a responsabilidade de tentar melhorar aquela situação. Orientada por Diego, ela reuniu os alunos interessados em estudar e, juntos deram início a um trabalho de conscientização dos outros. Depois de algum tempo a tentativa começou a mostrar resultados positivos. Fez o mesmo em relação aos professores e também conseguiu melhoras significativas. No meio do ano ela já não era só uma representante de alunos de uma classe; tornara-se uma verdadeira líder, influenciando a escola como um todo.
Os diretores da empresa continuaram protelando as conversas com Diego para detalhar procedimentos e dar início às correções necessárias para resolver os problemas existentes. O clima de tensão e medo continuava a dominar o ambiente.
Dois meses depois da primeira reunião, onde todos concordaram com o diagnóstico de Diego, o presidente o convocou a sua sala e lhe comunicou que seus serviços seriam dispensados porque não haviam apresentado resultados práticos, até ali. Ele demonstrou perplexidade; como poderia ser cobrado por resultados sobre um trabalho que não pudera ser iniciado porque os diretores não se dispuseram a analisar o projeto que Diego fizera e que dependia de autorização para ser colocado em prática?
Diego sentia-se diante de um dos maiores absurdos de que tivera conhecimento durante sua vida profissional. Era inacreditável que estivesse sendo acusado de algo cuja única culpa cabia a quem o estava acusando!
Se restava alguma dúvida, até ali, de que os diretores eram os principais responsáveis pelos problemas que a empresa vivia; deixava de existir. A atitude do presidente, acabava de confirmar a acertiva do diagnóstico feito por Diego. Ele declarou sua perplexidade sobre o que acabara de ouvir e demonstrou sua revolta contra tamanha aberração.
O presidente, demonstrando toda sua incoerência, voltou atrás na decisão que havia comunicado, pediu a Diego que continuasse o trabalho e prometeu convocar uma reunião para a análise do projeto e as providências necessárias para coloca-lo em prática. Alegou que agira por impulso, pressionado pelo excesso de trabalho e pelo número de problemas que enfrentava diariamente.
Diego defendeu que esse era um dos maiores problemas: ações impulsivas, provocadas por acúmulo de problemas, causado pela falta de soluções. Que seu projeto visava exatamente a tentativa de resolver isso, para que as pessoas se livrassem da pressão emocional e pudessem se dedicar a análises racionais, na busca de soluções.
O presidente disse que convocaria, o mais breve possível, uma reunião para que o processo pudesse ter início.
Como sempre acontecera, Diego e Mary usavam o tempo em que estavam juntos para conversar, questionar e analisar. Desde a volta dela, os assuntos predominantes nessas conversas eram a escola e a empresa. Tanto uma como a outra eram tão problemáticas, que dificilmente eles conseguiam abordar outros assuntos.
Mary, além das atividades como representante de alunos, se empenhava para que seu grupo de trabalhos escolares, não os encarassem como simples tarefa de casa. Incentivava os colegas a pesquisas e discussões, tentando tirar o maior proveito do tema abordado. Promovia reuniões com os colegas, em casa, com a participação de Diego, onde os temas eram debatidos, objetivando identificar sua relação com a vida e o dia a dia das pessoas. Incentivava os colegas, desempregados como ela a, paralelamente à busca de emprego, aproveitar cursos de capacitação profissional, oferecidos gratuitamente por algumas instituições.
Se Diego acumulava decepções no trabalho na empresa; sentia-se gratificado ao colaborar com aqueles jovens para que tivessem melhores condições de enfrentar as dificuldades e tivessem ânimo para lutar por seus objetivos. A convivência com Mary voltara a ser como fora antes da separação: propiciando enorme felicidade e prazer nas coisas mais simples e nos mínimos detalhes. Aquela relação causava admiração e inveja.
Naquela cidade tiveram oportunidade de assistir a shows com duplas sertanejas, famosas ou desconhecidas, dançar em bares com música ao vivo, passear em parques municipais e passear pela região.
Desde a reunião em que Diego apresentara seu diagnóstico, ele passara a comandar uma das seções da fábrica em conjunto com o encarregado da manutenção geral.
Pode verificar que o rapaz com dividira a casa, não perdia a oportunidade de tentar prejudicá-lo, tentando induzi-lo a erros e. até, sabotando seu trabalho. Tentara conversar com ele, mostrando que não tinha a menor intenção de prejudica-lo, pelo contrário; que estava ali para ajudar a todos e não para criar mais problemas. Que reconhecia sua capacidade e pretendia propor à diretoria que o aproveitasse melhor. No entanto, o rapaz o via como um perigoso inimigo. Dizia a Diego que não tinha nada contra ele. Que ele é quem estava imaginando coisas irreais. No entanto, seu comportamento e atitudes mostravam o contrário, escancaradamente.
A fábrica não funcionava aos sábados, só extraordinariamente. Em uma dessas vezes, Diego precisava que fossem emitidas etiquetas para um determinado produto. Como o responsável por elas não se encontrava na fábrica, o rapaz era quem deveria providenciá-las. Ele as emitiu num formato diferente do usual. Quando Diego o questionou sobre a diferença; ele alegou que fora emitir o tipo normalmente usado. Na segunda-feira, ele disse a um dos diretores que o Diego havia usado etiquetas em desacordo com o padrão e que isso indicava falta de atenção ao trabalho. Fez isso sabendo que os diretores estavam evitando conversar com Diego, que não iriam acusa-lo do erro denunciado e que este, não teria chance de esclarecer a verdade. Foi o que aconteceu. Diego só ficou sabendo do incidente, depois de algum tempo, através do comentário de um operário que ouvira a conversa entre o rapaz e o diretor.
Depois da primeira vez em que Diego fora demitido e readmitido, isso aconteceu mais duas vezes. Na quarta vez, ele desistiu, considerando que não havia a menor possibilidade de realizar o trabalho necessário para solucionar os problemas, porque os responsáveis impediam que ele tivesse início.
Quando chegou em casa, comunicou à Mary o que havia acontecido: que estava desempregado. Ela lembrou-o de que, em várias ocasiões em que analisaram o problema da empresa, haviam previsto que esse desfecho era o mais provável. Que, dificilmente, os diretores se proporiam a modificar-se. Não tendo como negar a racionalidade do diagnóstico, preferiam esconder-se a expor-se na tentativa de correção.
Diego cadastrou-se em uma empresa de assessoria de emprego em nível nacional, pela internet. Propôs-se a trabalhar em qualquer lugar do Brasil, menos São Paulo e Rio de Janeiro. Todos os dias visitava um syber cofee para verificar se havia alguma oferta de emprego na internet, mas seu desejo não se realizava.
Mary começou a fazer bolos e salgadinhos, café e suco, que Diego saia para vender nas oficinas e pequenas indústrias da redondeza. O rendimento era pequeno mas era melhor que nada.
Diogo decidiu comprar material e fabricar escadas de ferro e churrasqueiras, no quintal de casa. Pediu a um japonês, que tinha uma oficina de eletricidade automotiva, na entrada da cidade, para expor os produtos que fabricava, na frente de seu estabelecimento. Conseguindo a autorização, passou a levar as escadas e churrasqueiras, todos os dias, para expô-las ali.
Como entendia um pouco de mecânica e eletricidade, Diego passou a ajudar o japonês quando o serviço apertava.
O que ganhava não era muito, mas o suficiente para as despesas da vida modesta que levavam. Era uma vida modesta e simples, mas de uma felicidade inimaginável. Eram convidados para churrascos na casa de amigos, dançavam, assistiam a shows, tomavam sorvetes nas sorveterias do bairro. Tudo muito simples, mas que lhes propiciava muito prazer e uma grande felicidade.
Numa noite eles conversavam, como sempre faziam quando ela chegava da escola, quando Mary disse a Diego que tivera um pensamento estranho. Algo lhe repetiu várias vezes que eles deveriam ir para onde a família dela morava. Era como as premonições que tinha quando criança e adolescente e que há muito não aconteciam.
Diego perguntou-lhe se aquilo não poderia ser causado por saudade que ela pudesse estar sentindo da mãe e dos irmãos. Ela disse que fora a primeira coisa que lhe ocorrera. Considerava que não. Sua maior preocupação era com o pai, principalmente com a saúde dele. No entanto, a premonição se referia à mãe e à irmã. Dizia-lhe que era para que fossem para junto delas e não do pai. Contou que havia mais uma coisa estranha: que tinha a sensação, um sentimento, de que ir para lá, não era uma coisa definitiva, mas uma passagem.
Diego não entendeu e pediu que ela tentasse explicar melhor. Ela disse que não era nada claro. Nenhuma voz, nenhuma visão; era um pensamento que ocupava sua cabeça. Era mais uma insinuação do que uma afirmação. Dizia que eles deveriam ir para a roça, para perto da mãe e da irmã dela, mas que não deveriam permanecer lá; no entanto, que deveriam passar por lá, que aquele lugar estava no caminho que teriam que percorrer.
Diego perguntou se ela vinha sentindo vontade de ir lá, rever os parentes e amigos, ou qualquer outro motivo. Ela disse que sentia a mesma vontade que sempre teve, principalmente de rever os irmãos e o pai. Que ainda estava um pouco magoada com a mãe, pela participação que ela tivera, fazendo o possível para que se casasse com o rapaz de lá. Disse que, se tinha a vontade que sempre teve de ver a família, sentia uma espécie de repulsa em voltar àquele lugar, sabendo que teria que enfrentar as pessoas que deveriam ter ficado revoltadas com a atitude dela, desistindo do casamento. Portanto, nada indicava que esses pensamentos fossem provocados por sua vontade em ir até lá. Que, aliás, se não fosse pelos pais e irmãos, preferia nunca mais voltar àquele lugar.
Diego, nos últimos anos, vinha considerando, com força cada vez maior, a existência de intervenções misteriosas na vida das pessoas. Analisara uma porção de fatos conhecidos, cujas causas não puderam ser identificadas, o que o levava a considerar a interferência de forças misteriosas. Se não encontrava explicações por meio da racionalidade, muito menos conseguira ao buscar justificativas nas religiões. Muito pelo contrário, as tentativas de buscar explicações nas religiões, fizeram aumentar sua repulsa a elas. No entanto, os fatos não poderiam ser negados, eram evidentes e inquestionáveis. A impossibilidade de compreender suas causas, mostrava que algo muito forte e misterioso interfiria no mundo, inclusive na vida das pessoas. Sugeriu à Mary que prestasse atenção para perceber se a tal manifestação não se repetia.
O tempo foi passando e nem Diego nem Mary recebiam qualquer oferta de emprego. Era estranho, porque, pelo menos, o curriculum do Diego era considerável, com indicação de profissionais e empresas que poderiam atestar sua capacitação. Nem convocação para maiores informações ele recebia.
Em outubro, a irmã de Mary telefonou-lhe e pediu-lhe para que, no final do ano, eles fossem para lá, para que a Mary cuidasse dela, uma vez que estava grávida e a criança deveria nascer no início do ano. Mary contou a Diego sobre o pedido da irmã e os dois riram muito, comentando a falta de noção da realidade. A irmã só pensara no seu interesse. Sabia que Mary lhe faria companhia, se encarregaria de todo o trabalho, inclusive cuidando dela e da criança durante a convalescença. Não considerava a distância de mais de mil quilômetros que os separavam, que eles tinham que lutar pela sobrevivência e continuar buscando melhores condições financeiras para o futuro. Não considerava que na região em que ela morava, dificilmente os dois conseguiriam trabalho que atendesse suas necessidades. Para ela, tudo isso era de menos; o importante é que pudesse ter a companhia da irmã, o serviço que esta poderia prestar-lhe e os cuidados que lhe dispensaria.
No mês seguinte a irmã voltou a telefonar e a insistir no pedido. Mary disse-lhe da dificuldade de atendê-la, do empenho para conseguir trabalho e melhores condições de vida. Da, praticamente, inexistência de possibilidade de que ela e Diego conseguissem algum trabalho satisfatório lá.
A irmã continuou insistindo, desconsiderando as dificuldades, realçando sua necessidade e o desejo de ter a irmã a seu lado.
Mary contou a Diego sobre a insistência da irmã, comentando o egoísmo e inconsciência que ela demonstrava, só pensando em satisfazer sua vontade, desconsiderando totalmente os problemas que eles poderiam sofrer se a atendessem. Comentou que ela poderia contar com a ajuda da mãe, que morava próximo e que não teria maiores problemas em ajudá-la.
A irmã continuou insistindo e os telefonemas agora aconteciam em intervalos de dois ou três dias. Dizia que ela receberia pelo trabalho prestado e que Diego poderia fazer alguns trabalhos, conseguindo uma renda também.
Diego colocou à Mary a situação que estavam vivendo, a falta de oportunidade de trabalho, o pequeno rendimento que estavam conseguindo com os trabalhos que ele vinha realizando. Lembrou-a da premonição que ela tivera algum tempo atrás. Sugeriu que deveriam passar a considerar a possibilidade de atender o pedido da irmã. Por algum tempo, ela teria trabalho e ele se submeteria aos trabalhos que aparecessem. Depois da convalescença da irmã, eles partiriam em busca de oportunidades. “Quem sabe se atendermos a premonição, o mistério não nos oferecerá uma oportunidade?”. Considerou Diego.
Combinaram pensar a respeito e, caso não acontecesse algo significativo, considerariam a possibilidade de atender o pedido da irmã.
Em meados de dezembro, como a situação continuasse invariável, decidiram atender o pedido da irmã e partir logo que terminasse o ano letivo na escola, o que aconteceria em poucos dias.
Despacharam a mudança para São Paulo, onde ficaria guardada no depósito da empresa em que Diego trabalhara, carregaram o carro com o que precisariam durante o tempo que passassem com a irmã, despediram-se dos amigos e empreenderam viagem.
Novamente partiam em busca de oportunidades de realizações. Deixavam para trás mais uma tentativa fracassada de conseguir um mínimo de estabilidade financeira. No entanto, reconheciam o valor do aprendizado que a experiência lhes proporcionara e, principalmente, o sucesso que a Mary alcançara na sua participação na comunidade escolar.
Durante a viagem conversaram sobre o que acontecera durante esse ano que chegava ao fim. Foram tantas espectativas, tantas emoções, tanto aprendizado, que tinham a impressão que a maioria das pessoas precisariam de vários anos para viver tudo aquilo.
Diego declarou, novamente, a satisfação e o orgulho que sentia pela participação que Mary tivera na escola, colaborando para que, a que era considerada a pior sala da escola, se transformasse na melhor. Nas lutas de que participara e que propiciaram que aquela comunidade sofresse mudanças benéficas, que repercutiriam no seu futuro. Confessou sua frustração pelo fracasso da tentativa de ajudar a corrigir os problemas a que se propusera. Porém confessava reconhecer o lado positivo desse fracasso, que demonstrou a capacidade que os dois tinham de superar adversidades, de lutar pelos seus ideais, de reconhecer erros e buscar acertos e, principalmente, o reconhecimento do valor do grande amor que os unia, propiciando-lhes tanta felicidade, prazer e uma força extraordinária para superar dificuldades.
Mary relembrou a força misteriosa que a dominara durante o tempo em que estiveram separados. Declarou sentir arrepios só de considerar que poderia ter se casado com aquele rapaz, limitando-se a viver aquela vida sem maiores alternativas, perdendo a oportunidade de participar de tudo que vivenciara ali. Ela ficou algum tempo em silêncio, olhando para Diego. Lágrimas correram por seu rosto quando ela declarou o grande amor que sentia por ele e principalmente o reconhecimento de sua humildade, solidariedade e coragem para enfrentar dificuldades, encarar desafios, acusar erros e perdoar. Disse não poder compreender a força que a levara a colocar em risco a convivência com ele, quando sempre tivera a consciência de que a vida sem ele não seria vida. Aproximou sua cabeça da dele e beijou-lhe a face, reconhecendo o grande valor daquele homem, seu ídolo e guru, sempre disposto a ajudá-la, apoiá-la, sem regatear esforços para conseguir o crescimento dela, amando-a com todas as forças e demonstrando grande orgulho com as realizações que ela ia conseguindo.
Depois de um instante de silêncio ele olhou para ela sorrindo e perguntou-lhe sobre o que estava pensando.
Ela perguntou-lhe se ele guardava algum ressentimento pelo sofrimento que ela lhe causara. Ele disse que não, principalmente, porque acreditava que não lhe cabia culpa, que aquilo fora causado por uma força misteriosa, maior que a capacidade dela de reagir. Que o sofrimento o fizera aprender e compreender muitas coisas e, principalmente, servira de parâmetro para que compreendesse a importância de se aproveitar ao máximo a felicidade possível, consciente de que um dia ela pode terminar. Voltou a confessar que a perda da mulher apaixonada fora muito ruim, no entanto, sentir que perdera a amizade de que desfrutavam, fora terrível.
A conversa relembrava acontecimentos, analisava conceitos, comportamentos e valores; considerava a influência da razão, da emoção e, principalmente do mistério, na vida das pessoas. Ela fluía facilmente como um regato que corre por seu leito, impedindo que a monotonia realçasse o cansaço da viagem.
Finalmente a chegada ao destino, ao lugar que eles sabiam ser somente uma passagem, por algum tempo, de onde partiriam para continuar sua busca, seguir o caminho de aventuras em busca de realizações.
Ficaram morando na casa da irmã de Mary. Ela cuidava da casa e dos afazeres domésticos, enquanto ele ajudava o concunhado nos trabalhos da fazenda.
Um dia, ao conversar com um primo dela, que trabalhava com um trator cortando árvores para uma serraria; este lhe disse que era um bom negócio, onde se ganhava razoavelmente bem. Diego disse não ter dinheiro para adquirir um trator, mas perguntou quanto custaria um. O rapaz lhe disse que por volta de dez a quinze mil reais, seriam suficientes para adquirir um, em condições suficientes para o trabalho. Explicou-lhe que as árvores que cortavam eram produto de reflorestamento. Que o pai dele era o encarregado geral da fazenda, fiscalizava o trabalho e media a madeira que saia. Que havia umas vinte equipes trabalhando, cada uma com três homens e um trator. Que, na pior das hipóteses, o rendimento era de três mil reais por mês, livres das despesas.
A fazenda onde essas árvores eram cortadas, ficava a uns oito quilômetros de onde eles estavam morando.
Ele voltou para casa pensando naquilo. Lá chegando comentou com a Mary o que ouvira. Ocorreu-lhe que tinham o carro e a moto, que possivelmente poderiam servir como parte de pagamento, na compra de um trator, o que viabilizaria a entrada no negócio.
O concunhado, que havia trabalhado vários anos cortando árvores; reiterou o que o primo dissera, confirmando as grandes possibilidades de ganho que essa atividade oferecia.
Nos dias seguintes Diego buscou mais informações, com outras pessoas, que confirmaram as possibilidades de ganho que esse trabalho oferecia.
Para conhecer o trabalho e verificar se ele teria condições de realiza-lo; foi trabalhar com o primo, alguns dias. Verificou que era um trabalho pesado e com risco de acidentes. No entanto, sentiu-se capacitado para realizá-lo, motivado pela lucratividade que oferecia.
Um conhecido informou a Diego que havia um trator, nas condições que ele precisava, numa cidade que ficava a uns cento e cinqüenta quilômetros dali. O primo e o concunhado se ofereceram para ir com ele, para ajudá-lo na avaliação das condições do trator.
Era um trator velho, mas em bom estado e, segundo o primo e o concunhado, em boas condições para o trabalho. Depois de uma longa e cansativa negociação, o negócio foi realizado, com o vendedor aceitando o carro e a moto que Diego ofereceu como parte do pagamento. O saldo, de quatro mil reais, seria pago em três parcelas.
Além do trator, era necessário um guincho, adaptado a ele, para possibilitar que as árvores fossem puxadas morro acima, até os locais em que seriam cortadas em toras, possibilitando que fossem carregadas por caminhões. Segundo as informações que obtivera, esse equipamento não precisaria ser comprado; uma vez que seria possível alugá-lo.
Depois de muito procurar, Diego verificou que seria impossível conseguir um guincho para alugar. Percebeu a situação crítica em que se metera. Havia investido tudo o que tinha na compra do trator e ainda ficara devendo o saldo, que dependeria do trabalho para ser pago. Sem o guincho, não teria como trabalhar. Não tinha como comprá-lo. Que fazer?
Por mais que se esforçasse, Diego não encontrava solução para o problema. Condenava-se por ter acreditado nas informações de que o guincho poderia ser alugado, sem ter conferido a veracidade delas. Mary alegava que as informações foram dadas com tanta segurança, que ele não teria motivos para duvidar delas. Apoiava-o, incutindo-lhe confiança, dizendo que conseguiriam resolver o problema, que não deveriam perder a esperança.
Diego soube que um corretor de equipamentos, teria alguns guinchos novos, com preço promocional, direto da fábrica, que facilitava o pagamento. Telefonou para o corretor que confirmou a promoção e que o valor poderia ser pago em quatro parcelas. Informou que só havia um equipamento, o último da promoção.
Diego telefonou para sua irmã, que se prontificou a emprestar-lhe o suficiente para pagar a primeira parcela. Voltou a ligar para o corretor e confirmou o pedido. Este ficou de confirmar-lhe a forma de pagamento da parcela inicial e a data de entrega do equipamento.
Embora tentasse várias vezes, Diego não conseguia falar com o corretor para receber as informações que este ficara de lhe passar. Numa das tentativas, conseguiu o número do telefone da fábrica. Ligou para lá e verificou que o pedido não fora confirmado. Como continuasse a não conseguir falar com o corretor, voltou a ligar para a fábrica e fez a compra diretamente, fazendo um depósito bancário para o primeiro pagamento. Ficou sabendo, posteriormente, que o corretor havia vendido o equipamento a outra pessoa que lhe oferecera maiores vantagens. Por isso evitara atender Diego nos telefonemas que este lhe fizera.
A fábrica prometera fazer a entrega em doze dias, no entanto, se passaram quarenta, até que o guincho fosse entregue.
Já havia passado três meses desde que chegaram ali, quando ele conseguiu começar a trabalhar com o trator. A remuneração dependia da produção e como eram meses chuvosos e, com chuva é muito difícil fazer esse tipo de trabalho, teve enormes dificuldades para cobrir as mínimas despesas. O ambiente na casa da irmã dela já estava ruim para eles, por causa do marido dela, que lhes fez várias desfeitas, mesmo depois de ter recebido tanta ajuda, principalmente dela, que teve que cuidar da irmã após o parto, quando teve complicações que exigiram bastante tempo de internação. Ela cuidava da casa, deles e da sobrinha recém nascida.
Muito descontentes com a situação, arrumaram uma casa, alugaram e mudaram.
Foram tempos difíceis aqueles vividos na casa da irmã dela. Eles trabalharam ali por volta de quatro meses, em troca de comida. Ele nem tanto, mas ela fazia tudo e ainda cuidava da irmã. O cunhado se comportava como se estivesse sendo incomodado, criando uma série de problemas para eles, sem qualquer motivo que justificasse tal atitude. Eles, principalmente ela, estavam ajudando e muito! O cunhado colocava dificuldades para que ele trabalhasse no trator que comprara e que precisava de uma capota e de alguns reparos. Dizia que o dono da fazenda poderia não gostar de saber que ele trabalhava no trator, ali. Pediu-lhe para não usar sua máquina de solda pois esta gastava muita energia e o dono poderia reclamar e assim por diante. Chegou a dizer que convidaria o irmão dele e a cunhada para virem passar uns tempos ali para cuidar da casa e de sua mulher, alegando, com todas as letras, que a cunhada não estava fazendo o necessário. Eles nunca atinaram com os motivos que pudessem Ter levado o cunhado a agir dessa maneira, com tanta ingratidão!
Alugaram uma casa muito maior e confortável do que necessitavam. No entanto foi a única que conseguiram e não tiveram alternativa, tendo que aceitar uma despesa maior que a pretendida. Acertaram o aluguel com o proprietário num domingo, dia do batizado da sobrinha. Mudaram nesse mesmo dia, sem ajuda de ninguém. Engataram uma carreta no trator e levaram tudo que estava na casa da irmã dela. Numa segunda viagem, carregaram o que estava na casa de um vizinho e uma geladeira velha que ela ganhara de uma tia. Quando se dirigiam para casa, começou a chover bastante. Não bastasse isso, quando chegavam em casa, ao passar por um bueiro que ficava sob a estradinha de acesso a ela, o mesmo desbarrancou e o trator caiu dentro. Tiveram um trabalho enorme para tirá-lo de lá. Tarde da noite, encharcados e cansados, conseguiram terminar a descarga da carreta, acomodando as coisas na ampla área que cobria a frente e lateral da casa.
Passaram os meses em que normalmente chove lá e eles esperançosos da chegada da seca para que pudessem saldar os compromissos assumidos e viver com um pouco mais de folga, uma vez que passavam por muitos apertos, tendo que limitar-se ao mínimo e, mesmo assim, já estavam devendo até na venda do vilarejo, um bom dinheiro. Já deveria ter passado o tempo da chuva mas esta continuava caindo, continuadamente. Quando em abril já começa a estiagem, naquele ano ela só chegou em agosto. Passaram muitas dificuldades, o que já era rotina em suas vidas. No entanto, o amor e a amizade continuavam amparando os dois, que nem chegavam a sofrer tanto, pois nas conversas que sempre mantinham, viviam comentando a validade de um para o outro, principalmente nos momentos difíceis. Que se não fosse isso, teriam desistido de muitas coisas muito rapidamente.
Mary não admitia limitar-se aos serviços caseiros. Na falta de alternativas, fazia trabalhos como diarista na roça, colhendo cenouras e beterrabas, carpindo plantações de milho e feijão, aceitando qualquer serviço que aparecesse. Isso não impedia que cuidasse dos afazeres domésticos com esmero.
A partir da estiagem as coisas começaram a melhorar vagarosamente, mas melhoravam. Ela recebeu uma proposta da dona de uma pousada, numa fazenda vizinha, para trabalhar lá esporadicamente, somente quando houvesse hóspedes, que por sinal eram raros. Como ela oferecia uma casinha com aluguel bem barato, eles concordaram e se mudaram para lá. As coisas melhoravam com o passar do tempo, mas muito lentamente.
A empresa, proprietária da fazenda da fazenda onde Diego cortava árvores, proibiu que os membros da equipe fossem para o trabalho e voltassem dele, viajando no trator. Ele foi obrigado a comprar um carro velho para transportar os empregados. Os resultados financeiros esperados eram muito aquém do esperado, no entanto, os problemas não paravam de acontecer.
Um amigo de Diego, que tinha um sítio na vizinhanças, ficou sem caseiro. Diego indicou a mãe da Mary para ocupar o lugar e ela foi contratada, mudando-se para lá com a família.
A dona desse sítio convidou Mary para, de vez em quando, ir a São Paulo fazer limpeza em sua casa. Diego a levava com a camioneta do casal. Ocorreu-lhes a possibilidade comprar coisas para vender ao pessoal da roça. Compraram alguns panos de cozinha, roupas de banho, cama e mesa e Mary começou a vende-las para a vizinhança. O negócio se mostrou viável e passaram a aproveitar as viagens em que ela ia fazer limpeza na casa da mulher, para transportar os produtos que compravam. O negócio foi melhorando e Mary passou a se dedicar exclusivamente a ele, percorrendo a região no carro velho que possuíam. O recebimento era parcelado, o que limitava o negócio ao pequeno capital de que dispunham. No entanto, o crescimento era significativo e Mary se sentia satisfeita com a nova atividade. Isso lhes possibilitava viajar para São Paulo cada uma ou duas semanas, além de permitir que ela pudesse se relacionar com várias pessoas.
A irmã dela e o cunhado haviam se mudado, no final do ano e a fazenda em que trabalhavam ficou vazia. Em maio, o proprietário os procurou perguntando se eles, melhor, ele, iria tomar conta da fazenda, uma vez que havia colocado ali umas cabeças de gado e precisava de alguém para cuidar delas. Eles aceitaram e se mudaram para lá. Ele vendeu cinqüenta por cento do trator e os sócios continuaram trabalhando, o que lhe rendia algum dinheiro, além de não pagar aluguel nem luz e ainda receber um pequeno salário. Ele concordara porque o dono da fazenda lhe permitira plantar alguma coisa e criar galinhas, porcos, etc.
As vendas cresciam. Claro que não era um grande negócio. mas Mary se mostrava satisfeita com a nova atividade; dava-lhe a oportunidade de estar e conversar com muitas pessoas e se livrava de ficar presa em casa. Afinal as coisas começavam a melhorar, como se diz, via-se a luz no fim do túnel.
O lugar que moravam na fazenda era bem bonito, agradável e sossegado. Tinham um rendimento que lhes permitia viver sem maiores dificuldades, estavam criando porcos e galinhas, iriam plantar milho e outras coisas pra alimentar os animais, ela se realizava vendendo suas coisas e ele cuidava do gado. Finalmente um pouco de calmaria, depois de tanta tormenta!
Eles tinham alguns atritozinhos, que nunca chegaram a ser problema de maior monta. As vezes, principalmente ele, ficava sem falar com ela um ou dois dias. Dizia que era sua maneira de se vingar de algum mal sofrido e que o silêncio fazia com que ela pensasse no ocorrido, que gerara o atrito. Depois conversavam, esclareciam e os problemas nunca ficaram sem solução. Os problemas eram sempre os mesmos e, talvez, provocavam discussões por não existirem problemas maiores. A maior reclamação dele era referente ao comportamento dela quando na presença da mãe e, também do cunhado. Ele acusava que eles tinham uma influência sobre ela que ele não conseguia entender. Influência essa que provocava, nela, mudança significativa.
Mary tinha consciência da personalidade da mãe, do seu egoísmo, prepotência, má administração familiar; dominada pela ignorância, sem capacidade para resolver problemas e com facilidade para criá-los. Ela se referia constantemente a esses problemas da mãe e do quanto gostaria que ela mudasse. Sentia pena por constatar que isso seria difícil, se não, impossível. No entanto, na presença dela, era incapaz de agir na tentativa de ajudá-la a corrigir-se, criticando comportamentos errados e sugerindo o que poderia evitá-los. Era como se a mãe a dominasse, anulando-a como pessoa.
Ela sempre criticara o comportamento do cunhado, principalmente, no que se referia ao tratamento que dispensava à irmã. No tempo em que moraram em sua casa, pôde constatar a ingratidão dele, quando disse que chamaria o irmão e a cunhada para ajudá-lo a cuidar da casa, da mulher e da filha; quando ela se desdobrava para fazer tudo isso, com verdadeira dedicação, sem medir esforços e sacrifícios; sem nunca ter dado motivos para a mínima crítica. No entanto, na presença dele, abandonava sua personalidade forte e capaz, tornando-se inerte, incapaz de reagir, totalmente submissa, como acontecia em presença da mãe.
Diego considerava que, se isso acontecesse só com a mãe, poderia ser causado pela tão alardeada forte ligação entre mães e filhos. Se acontecesse só com o cunhado, poderia ser causado por um amor inconfessável ou coisa parecida. No entanto, nada indicava que essas causas pudessem ser reais. Diego nunca conseguiu compreender o que causava aquele comportamento dela.
A maior reclamação dela, era o jeito bagunceiro dele, largando coisas por onde passava, sem maiores preocupações com a aparência pessoal e coisas desse tipo. Não era tão exagerado, mas como já foi dito, na falta de problemas maiores, esses serviam para quebrar a rotina. Nem um nem outro tinham motivos para maiores críticas. Muito pelo contrário, tinham motivos de sobra para se admirarem e respeitarem; e tinham consciência disso.
Quando foram trabalhar na fazenda, levaram um irmão dela para morar e trabalhar com eles. Ele tinha treze anos. Propuseram-se a cuidar dele, ensinar-lhe o que pudessem, em fim, ajudar na sua formação. Em troca ele faria alguns serviços, ajudaria no que pudesse, recebendo uma pequena remuneração que não poderia ser chamada de salário. Esse menino tinha uma série de problemas de comportamento. Diego vivia chamando-lhe a atenção, algumas vezes com severidade, com o intuito de corrigi-lo. Ele se revoltava, ia embora, mas, depois, acaba voltando. Depois de quatro meses que estavam morando na fazenda, o menino fazia aniversário. Mary prontificou-se a fazer-lhe um bolo para comemorar. Disse a Diego o que pretendia fazer e ele lhe disse que o comportamento do menino não merecia um agrado e sim reprimenda, pois estava muito mal acostumado. Mas que, por ser adolescente, não era razoável merecer dureza muito grande nem castigos exagerados. Fariam o bolo, mas não fariam festa, mostrando a ele que não tinha feito por merecê-la, que quando melhorasse a maneira de ser, com prazer lhe seria oferecida uma festa mais a contento com a comemoração. Ela concordou.
Na véspera do aniversário, que seria num sábado, ela lhe pediu que fosse buscar uma amiga que viria ajudá-la a fazer o bolo. Ele foi, mas achou estranho que ela precisasse de ajuda para fazer uma coisa que fazia muito bem e rapidamente. Ele foi buscar a amiga e, durante o dia, verificou que ela fazia um bolo enorme, exagerado mesmo. À noite, eles foram levar a amiga e a mãe de Mary, que também apareceu para ajudar, em casa. Na volta ele comentou com ela o que lhe parecera um exagero e que a amiga ao invés de ajudar, acabara atrapalhando. Ela concordou e alegou que não pudera negar à amiga a que viesse, porque ela se sentiria ofendida ao ter sua ajuda recusada. Tanto é que a manteiga que ela tinha em casa para fazer o bolo, dava e sobrava, no entanto, teve que mandar buscar mais porque a amiga exagerara na quantidade de bolo, descumprindo o que ela lhe pedira.
No dia seguinte, apareceram a amiga, a mãe e mais uma amiga que chegara sem saber de nada, viera para fazer uma visita. Ficaram todas, o dia inteiro, preparando comidas, em quantidade que daria para um número bastante grande de pessoas. Quando ele viu aquela movimentação e o que estava sendo feito, ficou revoltado, mas não falou nada, apenas demonstrava na fisionomia sua contrariedade. Afinal ela lhe dissera que só convidara a mãe, um tio, uma tia, com as respectivas famílias, e o casal de amigos para quem a mãe trabalhava. À noite só veio o pessoal mencionado, menos a tia que não aparecera. Sobrou comida e bolo, que não foram consumidos nem dez por cento do que prepararam. Ela não gostara da acusação recebida no dia anterior, ele não se conformava com o exagero cometido e, isso, provocou que continuassem sem se falar até no dia seguinte, quando na hora do almoço ela lhe disse que precisava sair e perguntou se poderia levar o carro. Ele alegou que precisaria sair mais tarde. Ela disse que, então, iria de moto.
O que ele pretendia fazer, mais tarde, era ir na casa do patrão da mãe dela, pedir-lhe a camionete emprestada para, no dia seguinte, levar peças do trator na cidade para conserta-las.
Entre o comunicado dela e a hora em que ia sair, ele pensou que ela mesma poderia pedir a camionete e trazê-la, se a conseguisse. Disse isso a ela e ela pegou o carro e saiu.
Na segunda feira, ele saiu muito cedo de casa para ir à cidade com a camionete que ela trouxera, levar as peças do trator. Quando ele saiu, ela ficou dormindo. Na volta da cidade a camionete quebrou e ele gastou um bom tempo para conseguir dar um jeito de chegar com ela em casa para poder arrumá-la. Soube que Mary estava com a mãe cuidando de uma roça de mandioquinha que haviam plantado. Passou lá e perguntou-lhe se queria subir com ele para casa, uma vez que se ela fosse a pé, teria que sair logo, para chegar em casa antes do escurecer. Ela disse que ainda não haviam terminado o trabalho e que, por isso, não iria com ele. Ele disse que precisava consertar a camionete e que, portanto, iria para casa;
Foi, arrumou a camionete e ficou esperando que ela chegasse. O tempo foi passando e ela não chegava. Escureceu e nada. Ela havia deixado o carro deles na casa da mãe, no dia anterior, quando voltara para casa com a camionete emprestada. Ele pensou que ela tivesse acompanhado a mãe até em casa e que viria com o carro. Como até as oito horas da noite ela ainda não tivesse chegado, ele foi até a casa da mãe dela e encontrou-a de banho tomado. Perguntou-lhe o que acontecera e ela lhe disse que estava esperando que ele a fosse buscar. Ele não disse nada e foram para casa, sem conversar. Claro que ele estava muito contrariado e ela, parecia não estar melhor. Foram dormir sem se falar.
Na manhã do dia seguinte ela o convidou para uma conversa. Sentaram-se à mesa e ela lhe disse que o relacionamento entre eles, nos últimos dias estava muito ruim, que talvez fosse o caso de se separarem. Ele respondeu que, realmente, não estavam tendo um bom comportamento ao optar por ficar sem conversar e tentar esclarecer o problema. Que ele acreditava ter razão uma vez que na sexta feira haviam conversado sobre o tamanho exagerado do bolo e que ela concordara e, no sábado, o exagero continuou multiplicado, como se o que conversaram não tivesse valido nada, não tivesse sido levado em consideração. Ela disse que ele tinha razão e que a separação serviria para que ele não sofresse mais esse tipo de contrariedade. Ele argumentou que ela estava nervosa e confusa, que deveria acalmar-se, pensar com serenidade e verificaria que era um problema simples. bastaria que conversassem, procurassem as causas dos porquês, as discutiriam e, com certeza, encontrariam a solução necessária como, aliás, sempre fizeram. Aquele não merecia nem o nome de problema diante dos que enfrentaram até ali e que nenhum havia ficado sem solução. Confessou que ele também tinha culpa ao preferir demonstrar na aparência a contrariedade, ao invés de procurar conversar, reclamar e buscar resolver a questão racionalmente. Ele alegou que o maior bem que tinham, acima do amor até, era a amizade e que, havia um problema, mas que eles tinham capacidade mais que suficiente para resolvê-lo.
Ela comentou que o que mais sentiria, caso se separassem, seria a perda da amizade e chorou ao comentar isso.. Ele afagou-lhe a mão, que estava sobre a mesa e notou que ela não movimentara um único nervo para retribuir o afago.
Ele, que tinha que voltar à cidade para buscar as peças do trator, aconselho-a a se acalmar, pensar e, quando ele voltasse ou quando ela achasse conveniente, conversariam e, com certeza, resolveriam o problema. Despediu-se e saiu. Ela ficou lavando roupas.
No caminho para a cidade, Diego foi pensando no que ela dissera e considerou estranho o comportamento dela. Considerou que ambos haviam exagerado. Ela por desconsiderar o que haviam combinado, permitindo o exagero no tamanho do bolo e reiterando o exagero, no dia seguinte, no preparo da comida. Mesmo depois de ter concordado que acontecera o primeiro erro. Ele, por sua vez, optara pela revolta silenciosa, ao invés de abordar o problema, procurar, em conjunto com ela, identificar as causas e buscar resolvê-las.
A revolta dele não era causada pelo custo financeiro do exagero, que por sinal, fora insignificante. Os produtos consumidos eram de valor muito pequeno e o trabalho fora gratuito. O problema era de consciência, de falta de racionalidade, de domínio da vontade incontrolada.
Diego considerou absurdo o que havia acontecido. Como seres humanos, falíveis, tanto ele como ela, haviam cometido erros durante o tempo em que vinham convivendo. Esses erros sempre foram acusados, analisados e admitidos por quem os cometeu, cuja única conseqüência era o aprendizado, a convicção da falibilidade humana e o reforço da humildade para compreender as susceptibilidades do ser humano. Lembrou que não se sentiam envergonhados ou constrangidos por ter errado; muito pelo contrário, sentiam orgulho pela capacidade de admitir os erros e conseguir aprender com eles. Considerou que, na volta, a encontraria receptiva, que se abraçariam fortemente, conversariam sobre o acontecido, admitiriam os erros cometidos e se orgulhariam de ter compreendido que, um problema tão pequeno, não poderia empanar a felicidade que aquele relacionamento lhes proporcionava.
Quando ele voltou, encontrou um bilhete na cozinha onde ela comunicava que decidira ir embora. Que ele sabia onde ela ficaria nos próximos dias, que se quisesse poderiam ser bons amigos. Ele ficou estarrecido e considerou que ela estava nervosa e precisando de um tempo para voltar ao normal. Decidiu não procura-la de imediato, dando-lhe o tempo que julgara ser necessário. Passou o resto da tarde montando o trator e só terminou o trabalho, já noite alta. No dia seguinte foi até o sítio onde a mãe morava e ela estava, para devolver a camionete ao dono. Procurou-a e lhe disse que levaria o carro para não voltar a pé para casa, mas que o carro, a moto, todas as coisas da casa e, inclusive ele, estariam a disposição dela, na hora que precisasse e quisesse.
No dia seguinte, no final da tarde, ela apareceu com a patroa da mãe dela, na camionete e disse que viera buscar as roupas e uma cômoda. Ele concordou, conversou com a mulher enquanto ela carregava as coisas ajudada pelo irmão. Terminada a carga, disse tchau e foram embora. Ele continuava estupefato, mas continuou respeitando o que acreditava, que ela precisava de um tempo. Que estava na casa da mãe o que, em princípio, não oferecia qualquer perigo para ela. Considerou que logo, logo, ela voltaria ao normal e ririam da atitude exagerada.
Na sexta feira, o menino que o ajudava, seu cunhado, disse-lhe que no dia seguinte a família dele iria para uma romaria.
No sábado, ele, sabendo que ela não estaria no sítio, aproveitou para visitar os amigos e deixar um recado com a mulher, para que dissesse à Mary que, se queria continuar sendo sua amiga, que o procurasse para conversar, de preferência no dia seguinte, domingo, porque ele já estava ansioso para tentar resolver aquela questão. Que o mais importante, para ele, era não perder sua amizade, que tanto prezava. Deixou o recado, depois de muito conversar e foi embora.
Ele esperou o domingo todo e ela não pareceu. Na segunda feira, no final da tarde, dirigiu-se ao sítio para desejar sorte ao proprietário que iria sofrer uma cirurgia e, claro, tentar vê-la e, quem sabe, ela alegaria um motivo para não tê-lo procurado no domingo e se dispusesse a conversar. O amigo já havia ido embora e só estava a mulher. Ele conversou com ela, que disse já estar de saída, enviou o desejo de boa sorte ao amigo, conversou um pouco com ela e com o tio da mãe da Mary que também estava lá, combinou de encontrá-lo na venda, despediu-se e foi embora.
Esperou o tio na venda e, quando chegou, este lhe disse que a Mary lhe pedira para ir, no dia seguinte, na fazenda buscar o freezer e o tanquinho de lavar roupa, pois os similares da mãe dela estavam quebrados. Ele concordou, mas ficou pensativo. Depois de algum tempo, disse ao tio que iria procurá-la para esclarecer algumas coisas, por não concordar com o rumo que as coisas estavam tomando. O tio lhe disse que ela fora com a mulher do amigo para São Paulo, onde iria fazer limpeza na casa. Ele ficou revoltado, mas não atinava com o verdadeiro motivo, acreditando que era pela ausência dela, da falta que lhe fazia.
No caminho para casa, verificou que a revolta se devia à maneira como ela o estava tratando, como se ele fosse algum marginal, bandido ou louco perigoso. Se negara a conversar com ele para tentarem resolver o problema, como ele havia sugerido, preferindo deixar um bilhete. Levou a patroa da mãe com ela quando foi buscar as coisas em casa; negara-se a procurá-lo para conversar, quando lhe pedira isso e, agora, que tinha algo a resolver, de seu interesse, simplesmente manda recado? Era demais!
Não conseguiu dormir a noite toda pois a revolta de sentir que o consideravam uma espécie de marginal não lhe saia da cabeça, era repetida constantemente, sem parar. Durante a madrugada pensou em ir encontrá-la e conversar com ela, em conjunto com a patroa. Pela manhã foi procurar o tio, mais para desabafar que para qualquer outra coisa. Conversaram bastante e o tio lhe informou que ela dissera que voltaria na quarta feira e que o procuraria no mesmo dia ou no dia seguinte, para conversar. Saiu de lá bem mais calmo, considerando que a palavra marginal ou bandido, não era apropriada para definir a maneira como estava sendo tratado. Que estava mais para que o considerassem enlouquecido pela perda do amor e que, isso, possibilitaria ações desesperadas, inclusive violentas.
Esperou a quarta-feira e não apareceu ninguém. Na quinta, no final da tarde, foi até a casa da mãe dela, esperando encontrá-la, conversar e tentar resolver o problema. No caminho chegou a considerar a possibilidade de que ela não quisesse conversar, o que impediria qualquer tipo de argumentação. Acreditava que se tivesse chance de argumentar, voltariam às boas, uma vez que não via qualquer motivo que indicasse outra solução.
Ao chegar, foi informado pela mãe que ela ligara dizendo que fôra embora, que não voltaria mais, que dissesse a ele que poderia fazer o que quisesse com as coisas deles. Que estava muito feliz em uma cidade vizinha. Como a mãe demonstrasse preocupação e quisesse saber seu endereço e telefone, ela disse que daria um número de telefone, mas que não adiantaria ligar para ele, pois não a encontrariam.
A mãe dela disse, ainda, que ela ligara no dia anterior, dizendo que estava na cidade, mas que só iria para a casa dela no dia seguinte, chegando por volta da hora do almoço.
Desde receber a notícia ele ficou desorientado, pois não imaginara que isso pudesse acontecer antes que conversassem. Passou nova noite em claro, atormentado por pensamentos involuntários e analisando a situação. Concluiu que ela estava doente, que não estava normal que, portanto, necessitava de ajuda.
Pela manhã, foi à casa da sogra, comunicou-lhe o que pensara e concluíra e pediu-lhe que o acompanhasse até a cidade pra obter informações do paradeiro dela e, depois, ir procurá-la para tentar ajudá-la.
Na cidade, obtiveram informações de que ela estivera lá, na quarta-feira e que, a última vez que fôra vista, foi por volta das quinze horas. Souberam também que ela andara procurando casa para alugar, mas não obtiveram mais nenhuma informação, nada que pudesse indicar seu paradeiro.
Diego decidiu esperar por informações que pudessem localizá-la, considerando que seria muito difícil localizá-la sem isso. Chegou a pensar em procurá-la pelo telefone que deixara com a mãe, mas desistiu, achando melhor dar um tempo, esperar mais alguma notícia.
Enquanto procuravam informações, ele considerou que um antigo namorado dela, aquele que era casado, que, quando ela resolveu deixá-lo, tanto a perseguiu, morava na cidade que ela dissera que estava. Como é uma cidade pequena, seria inevitável que não se encontrassem e, claro, ele voltaria à carga, causando-lhe problemas e desassossego. Ou será que estava com ele?
Quando chegaram na casa da mãe, pegou o número do telefone e tentou ligar. Descobriu que o código da cidade estava errado. Tentou com o código que seria o correto e ninguém atendeu, embora o telefone chamasse.
Na segunda feira, no fim da tarde, foi à casa da mãe dela e esta lhe informou que falara com a filha e que ela estava, mesmo, com o antigo namorado que mora naquela cidade, como ele havia considerado como uma possibilidade. Disse-lhe que ela pedira para que ele lhe ligasse na quinta feira as nove horas. Ele ligou imediatamente, disse-lhe que ela estava doente, que precisaria de tratamento, que, se quisesse, estava disposto a ajudá-la no que fosse preciso e ficou de ligar no outro dia para saber sua resposta. Ela só concordava, com a voz apática, sem demonstrar qualquer tipo de emoção.
Após desligar o telefone, Diego deu-se conta de que agira idiotamente. Se ela estava, realmente, doente; como ele considerava, não teria consciência disso e, portanto, consideraria que quem estaria doente, ou louco, era ele. Admitiu que a emoção o confundia e dificultava que racionalizasse devidamente.
Ele passou a noite de terça feira muito mal. Na manhã de quarta-feira, veja o que aconteceu:
PS. A estória prossegue contando o comportamento incoerente de Mary, demonstrando a efetiva mudança de personalidade, o sofrimento de Diego e as análises que ele fez a respeito do acontecido.
Passei o dia de ontem muito mal e fui dormir sem ter melhorado.
Acordei por volta das 4:30hs, sem sono. Fiquei na cama dormiscando até as 5:30hs, quando começou o telecurso. Era a primeira aula de solda, que me interessa muito. Não consegui assistir toda a aula porque cochilava. Saco! quando queria dormir, não conseguia. Quando quis assistir a aula, dormi.
Levantei as 7:00hs, muito bem! Bem disposto e sem tristeza. Estranhei!
Senti que havia acontecido alguma coisa, que eu não conseguia entender, mas que havia acontecido, havia. Achei estranho oestar me sentindo tão bem, quando só tinha motivos para amargura, tristeza e outras coisas ruins.
Quando subi pra roçar, pensei que a mulher que está com o Renato não é a minha, é só o corpo dela, ocupado pela outra. Que, quando a Josi voltar, voltará pra mim, mesmo que como amiga, afinal, ela sabe que amigo como eu não se despreza.
Pensei que tenho que ligar pra Jose, fiquei de fazer isso pra acertar os negócios do banco e da firma, além de saber o que ela pensara sobre o que lhe disse na segunda feira. Pensei que fizera besteira ao dizer-lhe que estava doente, que precisava de tratamento, de ajuda, que pensasse no que estava fazendo e que, se concluisse que precisava de ajuda, que estávamos prontos a ajuda-la. Foi besteira, porque ela é a Jose e não a Josi. A Jose não está doente, ela é a doença. Quem precisaria de ajuda seria a Josi, mas, neste momento, a Jose domina o corpo e não permitirá que a Josi seja ajudada.
Ocorreu-me que deveria ligar pra Jose, pra resolver as questões do banco, mas que deveria aconselha-la. Dizer-lhe que, já que está lá, aproveite ao máximo, não perca a chance de fazer o que puder, conseguir o máximo de felicidade. Que aproveitasse, também, pra cuidar da saúde, dos dentes, da ginecologia, etc. Que aproveite o sistema de saúde de Camanducaia, que deve ser melhor que o daqui e que, o que não puder ser feito na rede pública, peça ao Renato pra pagar. Depois transcrevo o texto que pretendo dizer a ela e que escrevi no caderno.
Pensei que deveria falar com o Renato também. Sempre tive pena dele, por considerar que era apaixonado por ela e que sua ausência era muito dolorida, além do amor próprio ferido, que deveria doer muito. Sempre comentei isso com a Josi, principalmente quando estávamos em Ribeirão, quando ele ligava muito pra ela. Acho que devo aconselha-lo a não desperdiçar o grande presente que recebeu. Depois transcrevo o que escrevi pra ele também.
Eu estava calmo, quase feliz e esse pensamento me domina até agora. Provavelmente porque quando se pensa no bem ou se o pratica, sente-se alegria como recompensa. Para a maioria das pessoas, isso poderá parecer uma tremenda loucura. Nem eu mesmo não tenho certeza se não é. Pode ser, mas é justificável, pelo que expus. Afinal, ela não voltará pra mim enquanto estiver com ele. O que tiverem que fazer, vão fazer. Portanto, já que não tem remédio, porque sonegar informações que possam gerar felicidade, mesmo que isso provoque o retardo da volta dela? Claro que não acredito que ele consiga seguir meus conselhos com o empenho que eles merecem. Que não conseguirá controlar o ciúme e que ele impedirá que desfrute tudo o que pode do relacionamento. Também acredito que o que tiver vai ser. Tenho certeza (a que se pode ter a respeito de qualquer coisa) que ela o deixará e sinto que não demorará muito. Em fim, quando isso tiver que acontecer, acontecerá independente do que qualquer um possa fazer, pois não depende de seres humanos. Portanto, acredito estar ajudando o inevitável. O prazer que tiverem não deverá me prejudicar, enquanto puder pensar assim. Então que sejam felizes!
Na quinta feira, no final da tarde, ligou pra ela, dizendo o seguinte (que tinha escrito pra não se atrapalhar):
Jose, tudo bem?
Me lembra de falar de cheques no final.
Vou me atrever a e dar alguns conselhos.
Enquanto você estiver aí, aproveite ao máximo. O Renato tem condições de te propiciar várias coisas.
Peça pra ele te levar no Rio de Janeiro, procure satisfazer essa vontade, que eu não pude, até agora. Convide-o pra almoçar e jantar em restaurantes e aproveite pra comer bastante lazanha.
Aí em Camanducaia o sistema de saúde deve ser melhorzinho. Aproveite pra fazer exames ginecológicos, verificar aquilo que te esquenta a cabeça e rosto. Vá ao dentista e faça revisão dos dentes e ponte.
No relacionamento, evite dar motivos pra ciúmes, não economize carinhos, aproveite ao máximo os bons momentos.
Esse corpo que você está usando é o mesmo que a Josi usa, portanto, cuide bem dele, pra que quando ela voltar, não o encontre com problemas.
Vou conversar com o Renato, também, e aconselha-lo a cuidar bem de você, aproveitar o máximo, não desperdiçar nada, pois ele ganhou um prêmio muito desejado e seria besteira desperdiça-lo.
Eu estarei esperando a volta da Josi pois, pelo menos como amiga, ela vai voltar um dia. Quando isso acontecer, estarei pronto pra retomarmos as conversas, vou aproveitar as experiências que ela tenha passado (quer dizer: você) e lhe contarei o quanto estou aprendendo, que é muito!
Quanto ao banco, te peço, se for possível, que você me forneça alguns cheques assinados, pra que eu possa efetuar pagamentos. Gostaria de não ter que pedir pro Nakano mandar o pagamento pra outra conta, mesmo porque gostaria de continuar aplicando aqueles oitenta reais da aplicação que você abriu. Eu te devolverei o cartão.
Por fim, te peço que arrume um caderno e escreva tudo que puder. Isso poderá ser de grande ajuda no futuro.
Perguntou se ela havia entendido e ela disse que sim. O rapaz não estava, o que o impediu de ler-lhe o que escrevera pra dizer-lhe, também, que é o seguinte:
Renato, parabéns pelo presente recebido. Sei o quanto ele foi esperado.
Vou me atrever a te dar uns conselhos, que você poderá usar ou não.
Aproveite ao máximo o presente recebido, não desperdice nada. Procure controlar o ciúme, que é o maior veneno pra um relacionamento. Parece que o seu é muito forte. Cuide pra que ele não provoque problemas e impeça o aproveitamento que o relacionamento pode propiciar.
Leve-a pra passear, procure o que possa diverti-los. Faça com que ela cuide da saúde, principalmente dos dentes.
Dê o mínimo de atenção ao resto, dedica-se a aproveitar o máximo que ela pode te oferecer.
Mais dia, menos dia, ela vai te deixar. Isso não depende de você, nem dela, nem de mim, em fim, não depende de seres humanos. Quando isso acontecer, você vai sofrer muito. Voc%\ê sabe muito bem como é. Por isso te digo pra aproveitar ao máximo enquanto durar. "Que seja eterno enquanto dure"
O corpo dela é ocupado por duas pessoas. Uma é essa que está com você, a outra é a minha. Eu não tenho como ter a sua e nem quero. Você nunca poderá ter a minha. Portanto, quando a sua for embora, espero que você se lembre do que estou te dizendo e não force a barra. Sofra a sua dor, procure consolar-se, mas não persiga a mulher que não será sua, até que a roda da vida, talvez, traga a sua de volta novamente.
Quando a separação acontecer, claro que você vai fazer o possível pra evitar, afinal não teria sentido você deixar que vá embora sem tentar mantê-la junto de você. Mas, lembre-se, quando isso acontecer, nada vai poder impedir. então, depois de tentar tudo que estiver a seu alcance, deixe-a ir. Lembre-se que um dia ela poderá voltar. Não a persiga pois isso só cria problemas e não ajuda em nada.
Aproveite ao máximo e enquanto puder, pra não lamentar, depois, ter desperdiçado.
Não se preocupe que, enquanto ela estiver com você, será só sua. Não perca tempo com ciúmes idiotas..
No dia seguinte ele ligou novamente pra tentar falar com o rapaz mas ele não estava. Como fosse ela quem atendesse o telefone, aproveitou pra questiona-la sobre algumas coisas, que provavelmente, a outra poderia não esclarecer quando voltasse.
-Por que você tem tanto medo de conversar comigo?
-É que é ruim ficar falando coisas que não vão ajudar em nada.
-Por que você resolveu ir embora?
-É uma coisinha aqui, outra ali...
-Desde quando você tinha resolvido morar com o Renato?
-Aconteceu de repente. Não saí daí por causa dele.
-Eu sei disso. Pelo que acho que sei, você decidiu isso na quarta feira.
-Foi mesmo.
-Você o procurou ou se encontraram.
-Nos encontramos por acaso, conversamos e resolvemos tentar.
-Você está feliz?
-Estou.
-Você o está amando?
-Não sei. É muito cedo ainda, estamos saindo, só coisas bôas. No começo tudo é bom.
-Você entendeu o que eu disse ontem?
-Entendi. Só não entendi o negócio de que você tinha tido um aviso.
-Eu interpretei como um aviso mas, você sabe como sou, pode ser coisa da minha cabeça. Antes de ontem acordei feliz, depois de, até na noite anterior, ter sofrido, não conseguido dormir e ter passado muito mal. Acordei feliz, subi pra roçar me questionando de onde teria surgido aquela felicidade. Me ocorreu que eu deveria ligar pra vocês, preveni-los de não perder oportunidade de ser feliz, cuidar pra não deixar que coisas bobas estraguem o que pode ser bom, em fim tudo o que te disse. Quero dizer ao Renato que tome cuidado com o ciúme, que pode estragar tudo, que cuide de você e que, quando ele te perder de novo (o aviso e a lógica me garantem que vai perder) que tenha dignidade, não te persiga.
-Acho que não seria bom falar isso pra ele. Como você vai ligar aqui...
-Não sei. Sei que tenho que falar, afinal é verdade. Eu não pretendo mais ligar pra vocês, depois que falar com ele. Desejo que vocês possam aproveitar ao máximo o que a relação puder propiciar. Meu amor ainda é muito grande, minha amizade também e quando precisar, pode me procurar que estarei disposto até a dar a vida, uma vez que sem você ela me vale muito pouco. Então, quando precisar me procure mas eu pretendo não incomodar de jeito nenhum.
1-É incrível como as pessoas se dispõe a julgar, irresponsavelmente, sem conhecimento do que estão julgando e emitem veredictos cáusticos que causam danos, as vezes, irreparáveis. Imagino quanta gente estará dando este veredicto: coitado daquele cara, se meteu a esperto, casando com uma menininha bonita e nova, achando que estava abafando e, agora, carrega um par de chifres por não ter acreditado que ela não passava de uma aproveitadora, sem vergonha, safada. Cansou de aguenta-lo e correu atrás do primeiro homem que apareceu.
2-Foi muito sofrimento, durante muito tempo. Só amor e paixão não seriam suficientes pra tanta resistência. O que os uniu tinha que ser algo mais forte ainda que isso!
3-Ela tinha ataques quando criança. Chegou a ser velada ao pensarem que estava morta. Tinha muitas crises.
19/08/05
Liguei pra Jose pra falar com o Renato mas ele não estava. Aproveitei pra questiona-la um pouco.
-Por que você tem tanto medo de conversar comigo?
-É que é ruim ficar falando coisas que não vão ajudar em nada.
-Por que você resolveu ir embora?
-É uma coisinha aqui, outra ali...
-Desde quando você tinha resolvido morar com o Renato?
-Aconteceu de repente. Não saí daí por causa dele.
-Eu sei disso. Pelo que acho que sei, você decidiu isso na quarta feira.
-Foi mesmo.
-Você o procurou ou se encontraram.
-Nos encontramos por acaso, conversamos e resolvemos tentar.
-Você está feliz?
-Estou.
-Você o está amando?
-Não sei. É muito cedo ainda, estamos saindo, só coisas bôas. No começo tudo é bom.
-Você entendeu o que eu disse ontem?
-Entendi. Só não entendi o negócio de que você tinha tido um aviso.
-Eu interpretei como um aviso mas, você sabe como sou, pode ser coisa da minha cabeça. Antes de ontem acordei feliz, depois de, até na noite anterios, ter sofrido, não conseguido dormir e ter passado muito mal. Acordei feliz, subi pra roçar me questionando de onde teria surgido aquela felicidade. Me ocorreu que eu deveria ligar pra vocês, preveni-los de não perder oportunidade de ser feliz, cuidar pra não deixar que coisas bobas estraguem o que pode ser bom, em fim tudo o que te disse. Quero dizer ao Renato que tome cuidado com o ciúme, que pode estragar tudo, que cuide de você e que, quando ele te perder de novo (o aviso e a lógica me garantem que vai perder) que tenha dignidade, não te persiga.
-Acho que não seria bom falar isso pra ele. Como você vai ligar aqui...
-Não sei. Sei que tenho que falar, afinal é verdade. Eu não pretendo mais ligar pra vocês, depois que falar com ele. Desejo que vocês possam aproveitar ao máximo o que a relação puder propiciar. Meu amor ainda é muito grande, minha amizade também e quando precisar, pode me procurar que estarei disposto até a dar a vida, uma vez que sem você ela me vale muito pouco. Então, quando precisar me procure mas eu pretendo não incomodar de jeito nenhum.
Ela pediu que eu desse um porco pra Cida e que a deixasse pegar as roupas que estão aqui, inclusive do Roni. Eu disse que o porco depois a gente vê, que as roupas e o resto ela pode vir buscar quando quiser.
Ela disse que o Renato está com vários negócios mas que é desorganizado. Ela está tentando por ordem nas coisas e que está sendo muito bom. Que ele tem um bar, que se veem pouco pois ele sai cedo e chega tarde. Que ontem, ou antes de ontem, houve uma briga no bar dele e que ele (Não tenho certeza se ele ou outro) foi preso, que a mãe dele foi até ela e lhe disse que é assim mesmo (acho que quis dizer que essas coisas acontecem mesmo).
Olha o mistério fazendo as coisas acontecerem! Acredito que ela saiu daqui por descontentamento em não conseguir realizações que lhe propiciassem reconhecimento. As briguinhas realmente enchem o saco e propiciam um bom motivo pra que desvalorizemos as coisas boas e não nos preocupemos em perdê-las. Sua vontade imperiosa de ser reconhecida, ajudada pela insatisfação a fez decidir por me deixar. O medo de ser questionada e não conseguir demonstrar racionalidade a fez fugir de me enfrentar numa conversa. Ela queria mas não sabia o que. A cabeça deve ter ficado mais perdida que cego em tiroteio procurando solução e, assim passou a semana. Quando voltou pra Santana, ainda não sabia o que fazer. Procurou casa pra alugar e pensou em arrumar um emprego. De repente, encontra o Renato e conversam. Ele diz que está sozinho, que tem vários negócios e resolvem experimentar um relacionamento onde, além de mulher, ela seria administradora dos negócios. Caiu como uma luva!
Vai crescendo a possibilidade de que o grande problema da Josi seja o domínio da vontade sobre ela. É uma força maior que sua capacidade racional e, nessas crises, a domina totalmente.
Ela sempre preferiu estar com pessoas inferiores a ela. Inferiores no sentido de menos cultas, menos inteligentes, etc., e não inferiores no sentido pejorativo. Com essas pessoas ela se sente segura e tem delas grade admiração. Isso a deixa satisfeita, receber elogios, que digam que ela é demais, que ninguém pode com ela, e coisas do tipo. Na presença de pessoas consideradas superiores, ela se sente diminuída e ao invés de aproveitar pra aprender, sua vontade a força pra que saia daquela companhia. Talvez por isso, ela prefira ficar na casa da mãe do que na da Marília.
Ela é inteligente, o que lhe facilita o aprendizado mas é desfavorecida pela preguiça em estudar, em aprender. Quer saber, tem capacidade pra aprender, mas tem dificuldade pra despender o necessário sacrifício pra conseguir o objetivo.
Como já trabalhou na SAFE, no Roberto, com a Miriam, em serviços que tinham algo a ver com administração, aprendeu algumas coisas. No entanto, achar que está capacitada pra administrar o que quer que seja, sem orientação, sem comando de quem conheça o necessário, é, no mínimo, temerário.
O mistério a colocou junto ao Renato. Ele precisa de alguém que lhe satisfaça o emocional e ninguém melhor que ela, a quem ama, demonstrado de sobra. Seria bem vinda a ajuda pra seus negócios, e ela gostaria de fazer isso. Foi juntar a fome com a vontade de comer! As questões que se colocam são:
-Ela terá humildade pra procurar ajuda e aprender o necessário pra fazer uma bôa administração?
-Ele aceitará interferência nos negócios, uma vez que deve ser do tipo que age conforme a ocasião, sem objetivos nem normas definidas?
-Será que esses negócios são todos lícitos?
O tempo se encarregará de demonstrar.
O mistério é mesmo indesvendável!
Se eu tivesse obedecido ao impulso que tive na madrugada da segunda pra terça-feira, quando ela foi com a patroa da mãe pra limpar sua casa, de procura-la lá e conversar; é provável que tudo tivesse se esclarecido, que a convencesse de que poderíamos resolver qualquer que fosse o problema, ela teria voltado comigo ou eu com ela, não teria encontrado o Renato e a história hoje seria outra.
Parece que estava escrito que teria que ser assim. E assim foi!
Que podemos nós contra isso?
Teria o mistério dado uma chance à reconciliação, colocado em mim aquele impulso naquela madrugada? Se fosse isso, ele teria jogado pra mim a responsabilidade de decidir o futuro e eu, não seguindo o impulso, propiciei o sucesso da outra alternativa. Seria uma boa maneira de me fazer sentir culpado.
RACIONAL, EMOCIONAL, RELIGIOSO
Pepe, Zeca e Zé, conversavam a respeito do relacionamento do primeiro com a Josi.
O pepe defendia que algo muito estranho causava transformações nela, que chegavam a torna-la outra pessoa. Por não atinar com o que provocaria isso, confessava ser um mistério, que impedia que os fatos pudessem ser entendidos pela racionalidade.
O Zeca considerava que não havia mistério nenhum. Ela tinha pouco juízo e se deixava dominar por sua vontade, irresponsavelmente, agindo segundo seus interesses, sem se importar com mais ninguém.
O Zé, muito religioso, justificava o comportamento dela como sendo causado pela sua pouca fé, o que permitia às forças do mal agirem, provocando-a a agir daquela maneira. Que, se ela, se entregasse à prática religiosa, propiciaria que as forças do bem a ajudassem a enfrentar as tentações do mal.
O Pepe propôs que analisassem os dados disponíveis e que buscassem justificar cada um, apoiando ou contrariando suas teses.
Ele começou por relacionar os dados que dispunha.
1-No dia 29/01/03, ela ligou comunicando que conhecera um rapaz, que ficara com ele e que estava em dúvida sobre o que sentia e que precisava de um tempo pra avaliar seus sentimentos.
2-Depois de uns quinze dias, como não ligasse novamente, liguei pra ela, que me disse que decidira ficar com o rapaz porque todos já sabiam do caso e não havia como voltar a traz. Disse que ficaria com o carro. Que pedira ao cunhado que me ligasse pra resolver isso e uma maneira de pegar as coisas e documentos que ficaram em S.Paulo.
3-Depois de alguns dias, me ligou e alertei-a sobre a possibilidade de ela estar cometendo um erro ao assumir um relacionamento que poderia tirar-lhe a liberdade e a impediria de realizações tão pretendidas. Ela disse que o relacionamento já apresentava problemas, aceitou o dinheiro que ofereci para ajudar nas dificuldades, alegou que poderia voltar pra mim, embora ainda não tivesse certeza.
4-No carnaval me ligou dizendo que estava tudo bem. Quando perguntei se estava namorando muito, respondeu que, um pouco. Alegou não ter tempo, que, quando desse, voltaria a ligar.
5-Poucos dias depois me ligou em casa e eu não estava. Ligou, durante a tarde pro celular, como quem tem urgência em falar. Ligou a noite e não disse nada que alterasse o estado das coisas.
6-Ligou no sábado pedindo pra voltar.
Pepe - Pelo relato que ela me fez, ao voltar, acredito que outra personalidade tomou seu lugar e agia por ela. Aparentemente ela nem tem conhecimento de tudo o que aconteceu, realça muito a apatia, que funcionava com um robô teleguiado. Ela repete muito que, por exemplo, quando ligava pra mim, dizia o que não queria e deixava de dizer o queria de verdade. Como a outra é que agia, por estar no domínio do corpo, sua vontade não tinha como acontecer. As qualidades demonstradas nos anos que vivemos juntos, até alí, mostraram suas qualidades, abnegação, companheirismo, inteligência, solidariedade, em fim, uma somatória de boas qualidades. Uma pessoa com essas características, dificilmente mudaria tão radicalmente.
Zeca - Uma pessoa apaixonada é capaz das maiores loucuras. Veja como ela agiu quando se apaixonou por você. Largou tudo e todos e partiu na tua companhia. E olha que seguir um cara que era bem mais velho, sem dinheiro, pra morar de favor e começar uma vida do zero; não é fácil! Ora! Se fez isso com você, por que não faria por outro?
Pepe - Concordo com você. Porém ela ficou comigo mais de tres anos, agüentando todo tipo de sacrifício. Com ele, não ficou nem dois meses.
Zeca - É que nesse caso não era amor, era só paixão, que não resistiu as primeiras dificuldades. Mas, no início, a paixão é cega e capaz de qualquer coisa.
Pepe - Só que sua inteligência consideraria as possibilidades de vida com ele e verificaria sem dificuldades que esse relacionamento não teria como prosseguir. Ela busca realizações, luta por elas. Ele não lhe permitiria fazer outra coisa que cuidar da casa e ter filhos. Pra verificar isso, não precisava nem ser tão inteligente.
Zeca - É preciso considerar que ela reagiu mal à possibilidade de mudar para Campo Grande. As dificuldades dos últimos tempos, também contribuíram pra que tentasse uma mudança. Vocês tinham decidido voltar pra roça e viver uma vida simples. Ora! Ela teria, com ele, a vida que vocês pretendiam ter lá. E há que considerar, ainda, que ficaria perto da família e que, esta, deve tê-la influenciado.
Pepe - A diferença entre eu e ele, é que eu sempre respeitei sua liberdade e a encorajei a buscar realizações, incentivei-a a estudar e a buscar conhecimentos.
Zé - Ela foi influenciada por forças do mal, que a levaram a agir dessa maneira. As forças do bem, a trouxeram de volta ao bom caminho, fazendo com que voltasse a considerar os bons valores.
Zeca - Ela pode ter voltado ao perceber que, casada com o rapaz, perderia a liberdade e ficaria impedida de fazer o que quisesse. Porém, não casando, faria o que? Iria pra onde? Desistindo do casamento, não poderia permanecer na casa da mãe, sua vida seria um inferno. Além do mais, alí é muito difícil de conseguir trabalho. Ora! A melhor solução seria voltar pra você. Sabia que você a receberia, sem compromisso, o que lhe propiciaria tempo pra reorganizar sua vida.
Pepe - Isso implicaria em ter que fingir todo o tempo que ficou comigo. Além do mais, não precisava ter voltado a ser minha mulher. Poderia ter voltado como amiga e tentado algo por sua conta, sem compromisso matrimonial comigo. Sabia que poderia contar com minha ajuda.
O SEGUNDO DESENLACE
Dados:
1-Até o dia vinte e nove de julho, nada indicava qualquer anormalidade e não ser que a vida estava um pouco rotineira. Nesse dia, tivemos uma pequena discussão, motivada pelo tamanho exagerado do bolo que ela resolvera fazer e que a amiga exagerara no tamanho. Além disso, reclamei de que usava dois pesos e duas medidas quando se tratava de seu interesse e do meu. Mesmo ressentidos, ela me abraçou a noite e eu retribui.
2-Me chamou pra conversar na terça feira pela manhã e conversamos numa bôa. Ela não estava bem. Já havia decidido deixar-me. Argumentei que resolveríamos aquele problema com facilidade. Que bastava que ela se acalmasse e racionalizasse com serenidade. Que na próxima conversa, com certeza, encontraríamos a solução. Que, de qualquer maneira, continuaríamos amigos.
3-Aparentemente, ela já sabia que não continuaríamos amigos, por isso chorou quando se referiu a essa possibilidade. Quem deve ter chorado foi a Josi. Quem não retribuiu o afago de minha mão na dela, deve ter sido a Jose.
4-Ao invés de me esperar pra conversarmos, na minha volta da cidade, ela preferiu comunicar sua decisão por um bilhete.
5-Trouxe a Marília quando veio pegar as roupas e a cômoda, com mêdo de mim.
6-Embora no bilhete tivesse dito que poderíamos continuar bons amigos, negou-se a conversar comigo, quando lhe deixei recado na Marília que me procurasse.
7-Na segunda feira, pediu ao Chico que viesse pegar o freezer e o tanquinho. Poderia ter falado comigo, que estive junto a casa da sua mãe e não o fez, nem pra comunicar que pretendia levar essas coisas.
8-Foi com a Marília pra S.Paulo fazer limpeza, pra voltar no dia seguinte, ficando de retornar na segunda-feira da próxima semana. Inclusive, deixou roupas na casa da Marília, pra não ter que carrega-las pra lá e pra cá.
9-O Neto a levou na rodoviária na quarta feira cêdo pra pegar o ônibus pra Santana. Ela chegou lá por volta das nove horas. Ligou pra Cida e disse que só subiria no dia seguinte, no ônibus da escola.
10-Passou o dia procurando casa pra alugar em Santana, dizendo isso a várias pessoas. Dizia, também, que procuraria emprego. Falou com o Prego depois das quinze horas e repetiu a mesma história.
11-Encontrou-se com o Renato e decidiu ir embora com ele, de imediato.
12-Ligou pra Cida, na quinta feira, da casa do Renato, dizendo que fôra com uma amiga pra Camanducaia, que arranjara um emprego e que estava muito feliz. Que começaria a trabalhar no dia seguinte. Que me dissesse que não voltaria mais e que eu dispusesse das coisas como quisesse. Deixou um número de telefone, dizendo que não adiantaria procura-la nele pois não a encontrariam. Deveria saber que pelo número do telefone, teria sua localização identificada facilmente.
13-Liguei pra ela na própria quinta-feira a noite. Disse-lhe do mistério, que ela estava doente e que precisava de ajuda (ela riu). Disse-lhe que pedisse ajuda, quando precisasse.
14-Liguei pra ela na sexta-feira. Disse-me que não sabia se o amava, pois como estavam fazendo muitas coisas bôas, é fácil ser feliz. Garantiu que o encontrara em Santana por acaso. Que não tivera qualquer contato com ele antes disso. Me autorizou a continuar usando a conta do banco e prometeu me enviar folhas de cheques assinadas pra eu usar.
15-No domingo, ligou pra Marília e disse-lhe que não poderia ir fazer a limpeza, como combinado, porque sua vida havia mudado radicalmente. Contou que estava vivendo com o Renato.
16-Na quinta feira seguinte, veio com o Renato na casa da Cida. Me deixou os documentos da moto, inclusive o recibo; recibos do Tiãozinho, cheques assinados e canhotos de cheques.
17-Domingo, vinte e nove de agosto, a Cida me disse, na casa da Marília, que a Rose depositara duzentos reais na conta e que eram meus. Perguntei se não havia parte da Marília. Ela ligou pra Jose que confirmou que eram meus.
18-Na segunda-feira, trinta de agosto, veio na Cida e deixou com a Marília: estrato do banco, cento e quarenta reais e recado dizendo que cancelara o cartão e os cheques que me dera. Além de não pagar o cheque da compra da Cida, ainda levou os duzentos reais que a Rose depositara e que dissera que eram meus. Disse, ainda, que tinha prazo até trinta de setembro pra transferir a firma.
Zeca-Ela vinha acumulando insatisfações, pequenas mas que, somadas no decorrer do tempo, foram crescendo e o atrito do bolo, foi a gota que fez "transbordar o copo." Desabrochou sua vontade de realizações, muito forte, e decidiu aproveitar a situação pra se livrar do relacionamento e partir pra buscar seus objetivos.
pepe-Mas por que fugiu de conversar e continuou fugindo, como se tivesse muito medo de fazê-lo?
Zeca-Porque ela só tinha uma vontade. Não tinha planos, não sabia como iria conseguir realizar seu intento. Sabia que você a questionaria, tentando mostrar que não tinha sentido jogar tudo pra cima, antes de buscar maneiras de satisfazer sua vontade.
pepe-Ela sabia que eu poderia ajuda-la a buscar soluções, mesmo que isso implicasse na separação.
Zeca-Ela não queria só realizações, queria mostrar que era capaz de busca-las sozinha, sem a interferência de ninguém, principalmente, você. Ela passou os dias seguintes com a cabeça a mil, pensando no que fazer mas não conseguia solução.. Voltou pra Santana, na quarta-feira, sem solução. Pensou em alugar uma casa pra ficar mais longe de você e arrumar um emprego que a mantivesse até que conseguisse a solução definitiva. Verificou que não seria fácil. No final da tarde, já meio desiludida, encontra o Renato e conversam. Ele diz que não está mais casado, que está bem financeiramente mas que tem muitos problemas por falta de ajuda na administração dos negócios. Ela vê a possibilidade de realizar sua vontade de realizações, aceitando o desafio de colocar em ordem a administração dos negócios dele, fazendo-os crescer, crescendo junto com eles, em fim, obtendo sucesso. Por outro lado, já se relacionara com ele e o principal motivo da separação fôra o fato de ele engana-la dizendo que deixaria a mulher e não cumprindo o prometido. Além disso, incomodava-a o ciúme que ele demonstrava, perseguindo-a, inclusive depois que ela o deixou e deixou claro que não queria mais nada com ele. No entanto, já gostara dele e, quem sabe, poderia voltar a gostar. Não custava tentar. Era o oportunidade que caíra do Céu!
Zé-Do Céu não! Isso foi armação das forças do mal. O Céu não colaboraria com coisa tão sem cabimento.
pepe-Tudo pode ser. Mas que é uma tremenda coincidência os dois se encontrarem num momento como aquele, em tal situação, é!
Zeca-Pode não ser coincidência. Eles podem já estar se relacionando há algum tempo.
pepe-É muito difícil, praticamente impossível, uma vez que ela só saia comigo e, as poucas vezes que saiu sem mim, levou a mãe. Além disso, se estivessem se relacionando, isso deixaria algum indício, mudaria o comportamento dela de alguma maneira. Não há qualquer indício disso. Além do mais, se isso fosse verdade, ela não teria deixdo roupas em São Paulo, nem procuraria casa pra alugar em Santana.
Zeca-Isso pode ter sido tudo armação. Combinaram agir assim, pra fazer crer que o encontro tivesse sido casual.
pepe-Que vantagem isso lhes traria?
Zeca-Sabe como é; devem ter acreditado que isso desviaria a atenção para o fato de que estariam se relacionando enquanto o outro relacionamento ainda existia. Isso caracterizaria traição e, ela, pode aceitar tudo, menos isso, ser considerada traidora.
pepe-Se tiveram calma e capacidade pra planejar isso, Poderiam ter evitado o choque da ida repentina, precipitada que, no final, ocasionou que todos pensassem que o caso já existia, jogando por terra a intenção que justificaria a armação.
Zé-As forças do mal agiram e promoveram o encontro, assim como todo o resto. Isso só pode ser resolvido com muita fé, pedido de ajuda aos Céus.
Zeca-Coincidências assim não acontecem. Ninguém me tira da cabeça de que eles já estavam se encontrando antes e armaram tudo.
pepe-Isso é achismo. Os dados indicam que foi coincidência. Uma estranh coincidência, misteriosa. Aliás, como todo o resto. Sua argumentação Zeca, é bastante coerente mas começa por tornar estranha a decisão de acabar com um relacionamento considerado como exemplar, onde ela tinha bastante liberdade, inclusive para reclamar da falta de motivação, de realizações. A personalidade dela, faria com que acusasse o problema primeiro, para depois, se nenhuma providência fosse tomada, agir por conta própria. Concordo com você que a vontade indomada pode ter disparado o processo. No entanto, uma força muito grande tem que ter agido pra que ela não pudesse domina-la. De onde apareceu essa força?
Zé-Tô falando que é a força do mal, só a fé pode resistir a ela.
pepe-Não sei a origem, pra mim é um tremendo mistério. Os efeitos são evidentes. As causas, misteriosas.
Zeca-É falta de juizo!
pepe-O que faz com que alguém coerente, controlado, inteligente, mude tão repentinamente, periodicamente? Por que a crueldade revelada em ações desnecessárias, que ocasionaram mais sofrimento ao ex-companheiro?
Zeca-Que crueldade?
pepe-A maior foi o negar-se a conversar. Sempre tiveram diálogo fácil, abundante. Na hora de uma decisão tão importante, ela lhe nega o direito de saber os motivos, defender-se se ele fosse o causador de algum.
Zeca-Você acha que ela poderia enfrenta-lo numa conversa? O que ela poderia dizer? Não teria a menor chance de proseguir nos seus planos sem entregar que estava aprontando uma safadeza. No lugar dela, eu faria a mesma coisa. É melhor correr que ficar sem saida!
pepe-Só que isso, foi causa de sofrimento muito maior que o necessário. Ele sempre se colocou a disposição pra continuar sendo amigo, ajudando no que fosse possível.
Zeca-Alem do mais, pode ser que ela ainda o ame ou sinta algo muito forte por ele. Não conseguiria encara-lo sem fraquejar. Nessa hora a solidariedade desaparece, ocasionando o crescimento desenfreado do egoismo.
Zé-É de espantar o que as forças do mal podem causar!
pepe-Não bastasse isso, fez questão de dizer que estava feliz, que não voltaria mais, que ele fizesse o que quisesse com as coisas deles. Era suficiente que dissesse que estava fazendo uma esperiência. Não precisava arrostar felicidade, mesmo porque não teria tido tempo de sentir nada mais que esperança.
Zeca-Ela quis evitar que você a procurasse, afirmando que não haveria o que fazer, que voltar, não voltaria de jeito nenhum, mesmo que o que estava fazendo não desse certo. Já que é pra acabar, que doa de uma vez e pronto. Já que não conseguiu encara-lo numa conversa, o melhor é dar o tiro de misericórdia e eliminar qualquer possibilidade de retorno.
pepe-Mas isso já aconteceu anteriormente, ela afirmou a mesma coisa e acabou voltando. Quem pode lhe garantir que isso não se repitiria?
Zeca-Será que, pelo menos por um minuto, ela considerou, pelo menos lembrou, do outro episódio? Ela está vivendo o agora, o resto que se dane!
pepe-Mandou buscar o guarda-roupa, que segundo o que disse, que na casa havia tudo o necessário, não vai usar. Mandou pegar tudo que pudesse lembra-la na casa: roupas, cremes, sahmpo, em fim, não deixou absolutamente nada.
Zeca-Se eram dela, por que deixar lá?
pepe-Pra não provocar, não aumentar a dor, afinal, não precisaria daquilo. Já havia levado o necessário, mais ainda do que tinha direito.
Zeca-Talvez quisesse provocar pra que ele reclamasse e ela tivesse algum motivo pra acusa-lo. Afinal ela não disse pro Prego que ele se negara a entregar-lhe o que era dela?
pepe-Disse, mas era mentira.
Zeca-Talvez estivesse procurando motivo pra que fosse verdade.
Zé-A maldade não tem consideração com ninguém!
pepe-Ela saberia da probabilidade de ele aparecer no sítio onde a mãe dela mora, nos finais de tarde, principalmente sabendo que o Neto chegaria naquele dia. Poderia ter evitado de estar lá, já que não pretendia falar-lhe. Mas não, pode ter feito de propósito só pra ele ver que ela estava com o outro mesmo.
Zeca-Tá exagerando! Pode ser que só tenha se lembrado dele quando o viu chegar. Acha que ela, feliz, ia se preocupar se ele apareceria ou não?
pepe-E o fato de ter cancelado o cartão do banco e os cheques que lhe fornecera assinados, depois de ter concordado que ele poderia usar a conta? E a firma, por que impedir que ele continuasse usando?
Zeca-Eu também não deixaria que usasse. Sabe lá o que ele poderia fazer, por vingança? Por que ela correria um risco desses. Só se fosse besta!
pepe-Ela o conhece melhor que ninguém. Sabe que ele seria incapaz de uma safadeza desse tipo. Tudo indica que foi crueldade. Só crueldade.
Zeca-O que ela fez, qualquer um faria. Ele pode ter sido honestíssimo até alí, mas, passando o que está passando, quem garante que ele não pode mudar e fazer o inesperado?
pepe-Teóricamente seria possível mas, o mínimo que ela poderia fazer, depois de tudo o que fez, era depositar-lhe um mínimo de confiança. Afinal o máximo que poderia fazer era criar problemas financeiros, dos quais ela poderia se defender, processando-o. Quanto à firma, também.
Zeca-Pra que correr o risco? Já que chegou no inferno, abraça o capeta!
Zé-Credo em cruz! É por isso que essas coisas acontecem. Ninguém tem mais fé!
pepe-Considerando os dados, a história da Josi e, principalmente o relacionamento de sete anos; é inadmissível que o comportamento dela, nas duas separações, possa ser considerado normal, simples distúrbio de personalidade afetada por valores e emoções latentes e que não se manifestam na maioria de sua vida, porque ela os mantém sob controle. Mesmo que a motivação seja o descontrole, há de se considerar que uma força muito grande a impediria de continuar controlando esses valores e emoções ruins. Não tenho dúvida de que essa força é muito poderosa, sobrepondo-se às forças dela, que desaparecem, levando consigo a personalidade, que é substituida por outra.
Zeca-Ela é a mesma pessoa, com inteligência, emoções, capacidade de trabalho, etc. A única diferença que se pode destacar é o aumento do egoísmo e a diminuição da solidariedade. Ela deixa de se preocupar com os outros e passa a se preocupar exclusivamente com ela mesma, buscando o que é melhor
pra sí, sem se importar com os prejuizos que isso possa causar a quem quer que seja.
Pepe-É evidente a explosão do egoismo. No entanto, há de se considerar que a racionalidade também deixa de funcionar com um mínimo de liberdade. Se não vejamos: Ela tem grande capacidade de aprender o que lhe interessa e não acredito que isso mude com a mudança de personalidade. No entanto, o conhecimento que ela tem, de administração de negócios, é insuficiente pra que se comprometa a administrar o que quer que seja. Se o Renato não tiver condição de ensina-la ou tiver alguém que o faça, a probabilidade de ela enfiar os pés pelas mãos, é enorme. A hipótese de que ela está com total domínio de sí mesma, defende que o maior interesse dela nessa relação é a possibilidade de realização profissional. O mínimo de racionalidade lhe mostraria que enfrentaria a dificuldade dela mesma para realizar sem ajuda tal empreendimento e de que, ele, não lhe facilitaria condições para desenvolver o trabalho. Isso se opõe a seu egoismo, dificultando em muito sua satisfação.
A satisfação propiciada por almoços, jantares, passeios, shows, roupas, conforto, em fim; tem grande valor quando não os temos, quando os desejamos. Na medida em que se tornam realidade e se repetem com constância, seu valor é sensivelmente reduzido.
Amor verdadeiro, respeito, possibilidade de conversar com liberdade discutindo idéias, buscando caminhos; o apoio para tentativas de realizações, a amizade dedicada, etc., tem valor constante, sempre renovado, a cada idéia nova, a cada dificuldade enfrentada. Se não existir um amor apaixonado, seria razoável trocar tantos valores bons por outros superficiais e passageiros?
Essa força que a domina, transforma-a numa pessoas mesquinha, incapaz e irresponsável. O único lucro possibilitado por isso é o desfrute de vantagens fúteis e que rapidamente perdem valor. Tudo isso só me aumenta a convicção de que forças misteriosas a dominam e alteram de tal forma sua personalidade que é o mesmo que substituir uma por outra.
O SONHO DE UMA VOLTA
Eram mais ou menos oito horas da noite, quando ouvi o barulho de motor chegando na fazenda. Saí pra ver quem era e, ví um taxi.
Era ela. Havia fugido de casa. Estava assustada dizendo que ele viria atrás dela.
Acalmei-a. Disse-lhe que eu a protegeria.
Aconselhei-a a tomar um banho pra se acalmar.
Quando saiu do banheiro, ouvimos o barulho de motor, novamente.
Era ele. Saí pra recebê-lo. Ele estava nervoso, transtornado. Convidei- a entrar. Ela havia se refugiado no quarto.
Ele perguntou por ela, queria saber onde estava.
Pedi-lhe que se acalmasse, que, daquela maneira não chegaríamos a nada.
Ele sacou uma pistola e apontando-a pra mim, ordenou que fosse busca-la ou me mataria.
Abri a camisa, lentamente, e disse-lhe que, se achava que isso resolveria o problema, que atirasse. Ele ficou paralisado, me olhando, a mão trêmula, a pistola tremendo.
Esperei um tempo, dois ou tres minutos, sei lá! Disse-lhe pra decidir: ou atirava ou guardava a pistola. Abaixou o braço que segurava a pistola, guardou-a no bolso do blusão e permaneceu parado, quieto. Convidei-o a irmos pra sala e nos sentamos de frente um para o outro. Pedi-lhe que falasse o que passava por sua cabeça. Ele esfregou a cabeça com as duas mãos, manteve-a entre elas durante algum tempo, levantou-a, olhou pra mim e começou a falar:
-Por que ela fez isso? Por que me abandonou? Por que voltou? Por que? Eu já estava conformado, não esperava tê-la de novo, embora não a tivesse esquecido por completo, a via no passado, como algo impossível de recuperar. Me lembrava com raiva, considerando-a má, quem desprezara meu amor e tudo que eu poderia lhe oferecer. Já estava no passado, não me causava mais sofrimento. De repente, reaparece, arranca do fundo de mim o amor que ainda estava lá, forte, queimando, desejando-a, apaixonado. E, agora, me deixa, me joga no mesmo inferno que me atirou da primeira vez. Por que?
-Ela foi te procurar, pedindo pra voltar?
-Não. Eu tinha ido em Santana e a encontrei lá. Ela estava sentada na praça, com uma bolsa. Parei e fui conversar com ela. Perguntei como estava, o que estava fazendo alí e ela me disse que tinha se separado de você e que estava procurando uma casa pra alugar. Perguntei se tinham brigado e ela disse que não. Que tinha acabado, que não dava mais. Disse-lhe que eu também havia me separado da mulher. Perguntei-lhe o que pretendia fazer, morando em Santana e ela disse que procuraria um emprego pra se manter até que surgisse uma oportunidade melhor. Disse-lhe que estava tocando alguns negócios em Monte Verde e que estava precisando de alguém pra me ajudar na administração. Que eu não estava conseguindo controlar como devido e que não conseguia alguém de confiança pra me ajudar. Propús-lhe que viesse morar comigo e que me ajudasse nos negócios.
-Ela concordou?
-Não. Disse que não queria nenhum relacionamento, que estava muito abalada e que pretendia ficar sozinha. Ofereci-lhe trabalho, que me ajudasse nos negócios. Que, pelo menos, experimentasse. Ela ainda relutou um pouco mas acabou concordando. Pegou a bolsa que trazia, subiu no carro e saimos pra Monte Verde. No caminho, perguntei-lhe sobre o motivo da separação de vocês e ela só dizia que tinha acabado, que não dava mais. Quis saber o que provocara isso mas ela continuava dizendo sempre a mesma coisa. Falei-lhe da minha separação, dos problemas que levaram a ela e, ela só escutava, sem dizer nada. Relembrei o relacionamento que tivéramos, o quanto eu a amara, o quanto sofri quando me deixou e que, agora, verificava que continuava amando-a do mesmo jeito. Ela falou do quanto eu a magoara, mentindo sobre a separação que eu vivia dizendo que aconteceria breve e que nunca acontecera. Que eu a enganara ao dizer que havia feito vasectomia e que, depois de algum tempo, minha mulher ficara grávida novamente. Que o meu ciúme. lhe causara problemas demais. Disse que tudo isso tinha motivado uma rejeição muito grande em relação a mim. Disse-lhe que compreendia tudo isso, reconhecia o quanto errara, que a vida me ensinara que o comportamento que eu tinha era idiota, Que o perdê-la, havia me ensinado muito, inclusive que persegui-la como fiz, ameaçar e tentar reconquista-la criando problemas, não levou a nada, pelo contrário, afastou-a de mim definitivamente. Ela me perguntou se ele conhecia algum hotel onde ela pudesse ficar até arrumar um lugar pra ficar. Disse-lhe que havia muitos lugares mas, que não era necessário, que ela poderia ficar em casa, sem problema, que tinha dois quartos e que ela poderia ficar a vontade.
Perto de casa, tomamos um lanche porque ela não quis jantar em um restaurante. Fomos pra casa e ela quis deitar logo, alegando estar muito cansada. Eu estava muito feliz! Quase não consegui dormir. Durante a noite, entrei no quarto dela e fiquei olhando-a dormir e me deu uma vontade louca de deitar com ela mas me segurei.
No dia seguinte, ela levantou e foi fazer café. Lavou a louça que estava na pia desde o dia anterior e limpou a cozinha. Tomamos café e ela quis saber quando começaria a trabalhar. Disse-lhe que teria que sair mas que voltaria logo pra conversarmos a respeito.
Quando cheguei na hora do almoço, ela tinha limpado e arrumado a casa, que, por sinal, estava uma bagunça. Perguntou-me de novo sobre o trabalho e lhe disse que estava verificando o que e como ele deveria ser feito. À noite convidei-a pra jantar fora. Fomos a um restaurante e depois levei-a pra dançar. Dançamos, fui me colando nela e acabamos nos beijando. Voltamos pra casa, disse-lhe que deveríamos tentar um relacionamento, que ambos estávamos livres e que poderíamos nos ajudar emocionalmente. Ela concordou e passamos a dormir juntos e nos relacionar amorosamente.
Eu não via como coloca-la pra trabalhar. Todos os negócios são relacionados a homens e ambientes inadequados pra mulheres. Eu precisava mesmo de ajuda mas, como ela poderia me ajudar? Ela me cobrava o início do trabalho mas eu não conseguia ver um jeito de realizar isso. Como ela continuasse pressionando, peguei uns fiados que já estavam antigos e pedi pra ela fazer uma relação pra que eu pudesse cobrar. Ela fez a relação e disse que ela mesma iria cobrar. Disse-lhe que não era bom ela fazer isso. Que os devedores eram gente ruim e não a respeitariam, criando mais problemas ao invés de resolver os que já existiam.
Ela cuidava da casa, estava muito carinhosa, saíamos sempre pra comer fora e passear, levei-a a uma porção de lugares. Estava tudo bem, só a insistência dela em trabalhar, atrapalhava um pouco. Um dia, disse-lhe que era bobagem ela querer trabalhar, que cuidando da casa e de mim, já estava fazendo mais que o suficiente. Ela ficou brava. Disse que não era isso que queria, que cuidar de casa não era seu negócio. Que viera pra trabalhar fora de casa, nos negócios que eu prometera. Me desculpei e disse que não estava dizendo que ela não poderia trabalhar nos negócios, que dissera que o que estava fazendo era suficiente e que não precisaria fazer mais nada mas, que se fazia questão, eu procuraria uma maneira dela participar nos negócios.
Ela continuou pressionando mas eu não encontrava uma maneira de coloca-la pra fazer alguma coisa. Sabe como é, eu sempre toquei os negócios sem esse negócio de ficar escrevendo muito. Eu compro, pago os funcionários, digo como os negócios devem ser feitos, como devem ser cobrados, como devem ser recebidos, em fim, fica tudo na minha cabeça. Como eu poderia passar minha cabeça pra ela?
-Seria o caso de começar a fazer uma escrita, criar tabelas de preços, um livro caixa, em fim, organizar os negócios pra poder ter um controle maior sobre eles.
-Mas não dá. Nesses negócios a gente tem que aproveitar as oportunidades e não dá pra ter um preço fixo. Quando dá, a gente aproveita e cobra mais. Quando não, a gente cobra menos pra não perder o negócio. Como deixar pra quem não entende do negócio, decisões assim?
-É dificil. Mas e aí, você conseguiu alguma cosa pra ela fazer?
-Não. Dava alguns serviços pra ela fazer nos bancos, pagar algumas contas e coisas assim.
-Ela sossegou?
-Não. Começou a forçar a barra, quis ir pra oficina, fazer fichas dos serviços, cadastro dos fregueses e coisas assim. Vê se tem graça uma mulher como ela, numa oficina, cheia de fotos de mulher pelada nas paredes, no meio de mecânicos e ajudantes, de fregueses. Não. Não tem jeito. Disse-lhe que isso seria impossível, que procuraria alguma coisa pra ela fazer mas que não estava conseguindo por falta de tempo.
Ontem, ela me convidou pra ir na casa da irmã em Cruzilha. Que o cunhado iria matar um porco e que convidara ela e a mãe pra irem lá comê-lo. Que poderíamos pegar a mãe dela na sexta feira, ir pra lá e passar o final de semana. Disse-lhe que era dificil ficar três dias fora da cidade, deixar os negócios na mão dos empregados sem fiscalização. Aleguei que o carro também tinha apresentado um problema no câmbio e que o deixara na oficina pra verificar o que estava acontecendo.
-E ela?
-Não deve ter gostado muito mas não reclamou. À noite fomos comer lanche numa lanchonete, pois ela tinha avisado que não estava com vontade de fazer janta nem de comer comida.
Quando saí hoje de manhã, estava tudo normal. Na hora do almoço notei que ela estava esquisita, quieta, calada, como se estivesse em outro mundo. Perguntei o que acontecera e ela não ouviu. Perguntei se não havia escutado minha pergunta e ela disse que não. Voltei a perguntar e ela disse que não havia nada. Ela continuou daquele jeito e quando perguntei mais duas ou tres vezes, ela respondeu da mesma maneira. Saí depois do almoço pra trabalhar mas fiquei cismado. Voltei bem mais cedo pra casa e encontrei um bilhete dela dizendo que a experiência não dera certo, que estava indo embora, que desculpasse alguma coisa e que não a procurasse porque sua decisão era definitiva.
Logo imaginei que tivesse vindo pra casa da mãe. Fiquei louco. Peguei o carro e vim. No caminho encontrei um taxi, meu conhecido, que me disse que a deixara aqui. Por isso vim até aqui. Onde ela está?
-Ela está aqui sim. Nem tivemos tempo de conversar ainda. Acho que você tem o direito de conversar com ela e obter os esclarecimentos que julgar necessários, no entanto, vou te lembrar algumas coisas:
1-Você a encontrou por acaso, numa situação favorável pra vocês tentarem uma experiência.
2-Ela relutou em aceitar sua oferta e, no começo, só aceitou a oferta de trabalho.
3-Você fez o possível pra seduzi-la e conseguiu o relacionamento amoroso.
4-A possibilidade de realização no trabalho, parece ter sido o motivo que a levou a aceitar seu convite. Você enrolou, tentando fazê-la a mulher dona de casa e amante, negando-lhe a realização do seu principal desejo.
5-Não bastassem as evidências, você parece ter desconsiderado os conselhos que te dei, na carta que pedi pra te entregarem no dia que você foi na casa da mãe dela.
6-Ela tem um problema, que pode ser considerada uma verdadeira doença, que faz com que ela mude totalmente a personalidade. Quando você a encontrou, ela deveria estar no meio de um furacão, sem saber o que fazer, com a cabeça em turbilhão. O destino, mistério, sei lá o que, fizeram vocês se encontrarem nessa situação. Se você pensar um pouquinho, vai perceber a estranheza de todos esses acontecimentos. Na carta, eu te avisei que havia duas mulheres no mesmo corpo. Que a que estava com você era uma delas, que a outra era a minha e que essa, você não conseguiria ter.
Portanto, esse abandono, era mais que previsível, Por isso te aconselhei a aproveitar o máximo enquanto fosse possível pois o que você estava tendo era temporário e iria acabar. Aparentemente, acabou. Dá pra você entender isso?
-Não. Ela não me deu tempo pra arrumar um jeito de coloca-la pra trabalhar. Você pensa que é fácil fazer isso?
-No seu caso, acho que é muito difícil mesmo. No entanto, acho que é tão dificil que você não conseguiria encontrar uma forma em tempo nenhum. Não adianta te dar um mês, um ano ou o resto da vida. Você dificilmente conseguiria uma forma de coloca-la pra te ajudar nos negócios. Não só por você, mas por ela também. Se você a colocasse pra fazer alguma forma de controle sem ensina-la, ela provavelmente precisaria buscar quem a ajudasse a resolver o problema e você não admitiria isso, principalmente se essa pessoas fosse homem. Portanto, é fácil perceber que esse relacionamento já nasceu com os dias contados. Algum mistério fez vocês se encontrarem pra que acontecesse alguma coisa e depois provocar a separação. O mistério não precisa mais que vocês continuem juntos, por isso a separação aconteceu.
-Você tá querendo me enrolar. O que você está dizendo, não tem pé nem cabeça. Não tem mistério nenhum! Ela foi porque quis, não obriguei. Não obriguei a ir, não obriguei a se relacionar comigo e, se não conseguiu trabalhar foi porque não teve paciência. Portanto, não tem nada de mistério nisso. Ela simplesmente quer que as coisas sejam do jeito que acha que tem que ser. Se não for, vai embora e pronto. Sem ligar pra quem deixa pra traz. Onde está o mistério?
-Pode ser que esteja em tudo mas o que está claro, é que no motivo que a levou a se separar de mim, no encontro de vocês em Santana, isso é evidente. Você poderia ter passado em Santana, mesmo ela estando lá e não tê-la encontrado. Mas, não. Se encontraram. Ela aceitou ir com você, mesmo depois de tudo que você lhe fizera e que era motivo mais que suficiente pra ela não querer te ver mais, muito menos, voltar a se relacionar com você. Embora tudo indicasse o contrário, aconteceu o que aconteceu. Você tem alguma explicação pra isso?
-Não vejo nada de mais. Ela se separou de você porque achou que o relacionamento não valia mais a pena. A gente vive encontrando conhecidos nos lugares mais inesperados, portanto, foi um encontro como outro qualquer. Quando conversamos ela percebeu que eu mudara, que não tinha mais os problemas que tinha antigamente. Nosso antigo relacionamento acabou por causa desses meus problemas. Ora, se eles já não existiam mais, é natural que o lado bom do relacionamento pudesse ser retomado. Não vejo mistério nenhum!
-Realmente, só essas informações podem levantar dúvidas a respeito da existência de um mistério. No entanto, se analisarmos um pedaço maior da história, ele fica evidente. No entanto, só esses fatos que analisamos já indicam muito fortemente a presença do mistério. Quem a conhece bem, sabe que não tomaria a titude que tomou quando se separou de mim, fugindo como quem foge de um grande perigo, sem o menor motivo pra isso. Ficar em Santana procurando casa pra alugar, quando havia prometido voltar pra casa da mãe, ao voltar de São Paulo. Em Santana conversou com muito pouca gente, quando o normal seria ter conversado bastante com várias pessoas, principalmente quando procurava casa e trabalho. Você aparece e se encontram, o que, na situação, é bastante estranho. Ela concorda em falar com você, quando o normal, pela experiência, seria se negar a isso, evitar a qualquer custo. Não só concordou em falar com você, como aceitou te acompanhar e ficar junto a você. Talvez, o motivo principal de ela ter concordado em ir com você, tenha sido o desespero de fugir de mim. Parece que o que mais a apavorava era a possibilidade de ter que me encontrar e conversar comigo. Você não achará tudo isso muito misterioso se não quiser, mas que é evidente é!
-Acho que você é que está querendo ver mistério onde tudo me parece normal. Eu não sei como era a vida de vocês. Perguntei várias vezes mas ela só dizia que era normal. Quando lhe perguntava sobre o motivo da separação, ela dizia que tinha acabado, que não dava mais. Acho isso normal, mais dia menos dia, a maioria dos relacionamentos tende a acabar.
-Com mistério ou não, você acabou de dizer uma grande verdade. Pra comprovar isso, o meu relacionamento com ela tinha terminado e, agora, terminou o de vocês.
-Não, Peraí! O de vocês durou mais de cinco anos. Ela não ficou comigo nem dois meses.
-Relacionamentos não tem data pra começar nem pra acabar. Podem durar dezenas de anos ou poucos dias ou até horas. A verdade é que, quando tem que terminar, seja porque motivo for, é difícil que possa continuar.
-Na primeira vez, o relacionamento terminou e voltamos algumas vezes. Portanto, o fato de um querer abandonar o relacionamento, não quer dizer que ele tenha acabado mesmo.
-Sem dúvida. Muitas vezes o motivo era algum problema possível de resolver e, se resolvido, o relacionamento poderá continuar por muito tempo, sem maiores problemas, até pelo resto da vida. Outra hipótese, mais comum, é que o inconformismo do que é abandonado, leva-o a forçar a barra na tentativa de que não termine. Apela emocionalmente, promete muito mas, não consegue cumprir o prometido e a motivação original acaba por terminar, também, com a tentativa de reconciliação. O motivo principal é o fim do amor. Sem amor o relacionamento entre um casal é praticamente impossível.
-Ela te abandonou e, agora, voltou pra você. Por que?
-Ela sabe que lhe dedico a maior amizade que pode existir. Que, sempre, estarei pronto a ajuda-la no que puder. Portanto, nada mais lógico que, numa hora dessa, venha buscar minha ajuda, amparo. Também não é impossível que ainda me ame e que, depois de se afastar de mim, tenha percebido que essa emoção ainda existia e como não houve nenhum motivo significativo pra nossa separação, tenha tomado consciência e resolvido buscar a reconciliação. Isso, sem considerar que tudo não tenha passado de ação do mistério, que armou tudo e que, por motivos que não se consegue adivinhar, tenha resolvido recolocar as coisas no lugar. Portanto, motivos é que não faltam pra que ela resolvesse voltar pra mim.
-E por que ela voltou pra mim e me deixou tão rápido?
-Já falei sobre isso mas, vejamos novamente. Ela te encontrou por acaso, seja pela intervenção do mistério ou não. Mas que foi por acaso, foi. Ela não te procurou. Certo?
-Certo
-Você lhe prometeu trabalho na administração de seus negócios. Certo?
-Certo.
-Ela não pretendia voltar a se relacionar com você. O fêz porque você a seduziu, com passeios, jantares, shows, em fim, prazeres. Ela acabou concordando em tentar, mas estava claro que não era nenhuma paixão. Certo?
-Não sei. Ela se dedicava tanto a mim, com tanto carinho que parecia estar me amando muito.
-Você disse bem: parecia. Ela deve ter se empenhado pra que esse relacionamento desse certo. No entanto, parece que não havia paixão, nem amor significativo. Quando ela viu que a promessa de trabalho, que era seu maior interesse, não haveria de se concretizar, porque você adiava sempre; percebeu que logo, logo, estariam vivendo como um casal normal, com a mulher desempenhando o papel de dona de casa e é o que ela menos queria. Prevendo que isso aconteceria, resolveu terminar antes que o problema aumentasse. Isso tudo, considerando que não havia mistério. Pois nesse caso, ele determinou que era hora de terminar, terminou e pronto!
-Como é que você pode pensar tudo isso, tão rápido?
-Rápido? Estou pensando sobre tudo isso desde que ela foi embora, tentando entender, procurando motivos que justificassem sua atitude, analisando as informações conseguidas, pensando pra fastar o sofrimento e sendo castigado por ele. Pra analisar tudo isso, em condições normais, acho que precisaria de uns dez anos. Desde o início me surpreendí com a quantidade de análises que fazia e a velocidade com que aconteciam. Mais uma coisa que me parece bastante misteriosa!
-Já que pensou tanto, o que acha que devo fazer?
-Acho que você deve conversar com ela, tentar saber os motivos reais e a possibilidade de reconciliação. É um direito seu, afinal, você participou desse episódio, se beneficiou e, agora, vai sofrer as consequências. Acho que ela te deve essa conversa.
-Então, chama ela.
-Vou ver se ela concorda em conversar agora ou se preferirá deixar essa conversa pra outra hora.
-Por que deixar pra outra hora? Já que estamos aqui, o melhor é acertar tudo de uma vez.
-É que pode ser que ela não esteja em condições de conversar agora. Que dizer, não tenha clareza suficiente, ainda, pra esclarecer tudo e discutir com serenidade o que quer daqui pra frente.
-Prefiro conversar agora e resolver tudo de uma vez.
-Se fosse você, preferiria dar um tempo pras coisas se acalmarem, ela ter tempo pra pensar com clama e poder decidir com clareza.
-Prefiro resolver agora.
Fui até o quarto onde ela estava e quando ia começar a falar, ela disse:
-Prefiro conversar agora e resolver tudo de uma vez.
Pedi-lhe que esperasse um pouco, fui até ele, pedi-lhe a arma e lhe disse que ficaria do lado de fora da casa, esperando o final da conversa. Que mantivesse a clama pois, ansiedade e nervosismo não ajudariam em nada. Pedi-lhe pra tomar cuidado porque no estado em que ele estava, não seria fácil levar aquela conversa, principalmente se ela confirmasse que era o fim, que não haveria o que fazer. Ele concordou, peguei a arma e saí da casa.
ELA RESOLVEU CONTINUAR LÁ
Ví o carro dele chegando. O coração acelerou. Não viera pra ficar, pois se fosse isso, não viria com o carro dele. Será que ele veio com ela?
Não. Estava sozinha. Estacionou e se dirigiu pra mim, cumprimentando-me e dizendo:
-Vim te dizer que sou a Josi, que voltei a assumir a personalidade e que decidi continuar levando a vida que a Jose estava levando. Vim em respeito a você que merece esclarecer as dúvidas, questionar, em fim, conversar o que quiser. Peço desculpas pelo que a Jose fez e estou aqui, disposta a conversar tudo o que você quiser.
-Obrigado. Onde prefere conversar, aqui fora ou lá dentro?
-Acho que é melhor lá dentro.
-Você tem consciência do que aconteceu, que motivou a separação?
-Foi uma coisa muito forte. Senti uma força grande me obrigando a me afastar de você. Apareceu de repente. Quando te chamei pra conversar, tive que fazer um esforço muito grande pra fazer isso, pois essa força queria que eu fosse embora, sem que essa conversa acontecesse. Fiz um esforço muito grande e consegui te dizer o que disse que, na verdade, nem me lembro exatamente o que.
Quando você saiu, não resisti, escrevi o bilhete as pressas e fui embora. Pensar em te ver e, principalmente, conversar com você, me apavorava só de pensar na possibilidade.
Vamos passar para o final. Depois a gente esclarece algumas coisas do meio que, pra mim, ainda estão nebulosas. No entanto, como você decidiu continuar lá, a motivação poderá esclarecer muitas dessas coisas. O que te levou a decidir continuar lá?
- A primeira reação, quando reassumi a personalidade, foi voltar correndo pra você. No entanto, pensei que você não não iria querer, que, desta vez, você estaria muito revoltado com tudo que fiz, que era imperdoável. Considerei a vergonha que você deve ter passado e que, se eu voltasse e você me aceitasse, teria que passar mais vergonha ainda.
Procurei encarar a realidade e analisar o que estava acontecendo. A primeira coisa que olhei foi o relacionamento que estava tendo com o Renato. Verifiquei que ele havia mudado muito. Não deixava o ciúme me incomodar, era carinhoso, compreensivo, procurando me agradar de todas as maneiras, me levando pra sair, preocupado com o que eu gostava e o que não, em fim, eu não poderia reclamar de absolutamente nada do seu comportamento em relação a mim. Verifiquei, também, que se não o amo como te amei, não me é indiferente, que me sinto bem a seu lado.
- Na questão do trabalho, é difícil porque nem ele, nem eu, conseguimos encontrar o que eu possa fazer pra ajuda-lo. Ele administra tudo na hora, sem planejamento. É o jeito dele fazer as coisas e tem dado certo. Pensei que se forçasse a barra pra me envolver, poderia atrapalhar e criar problemas ao invés de ajudar. Passei a buscar conversar o máximo possível sobre o dia a dia dos negócios. Ele me conta tudo que vai acontecendo e tento ajuda-lo a analisar os problemas. Muitas vezes tenho conseguido dar palpites que ele aproveita. Muitos tem funcionado. Dessa maneira, me sinto colaborando e me realizando verificando que ele reconhece minha contribuição.
- Verifiquei que sinto falta de uma conversa como as que sempre tive com você. Mas, por outro lado, percebi que sempre entendi a maioria das coisas que fosse colocada, porque você esbanjava explicações, dando exemplos, acompanhando meu raciocínio e me ajudando a entender. No entanto, isso exigia, de mim, um grande sacrifício, me sentindo forçada a raciocinar pra entender. Percebi que isso acontecia com a maioria das pessoas com quem você conversava assuntos sérios. Notei que você tem razão quando diz que tenho preguiça mental. Tenho mesmo, por isso me sinto bem conversando com minha mãe e pessoas como ela. Aí não preciso me esforçar, discuto com facilidade e sempre tenho razão. É muito mais fácil, me faz sentir bem, sinto-me especial, curto o reconhecimento, me sinto lisonjeada. Com o Renato e as pessoas de lá, sinto a mesma coisa.
- Percebi que viver a seu lado me exige muito sacrifício mental e, mesmo assim, continuo me sentindo muito pequena, incapaz, burra mesmo. Isso me é muito desagradável. Por outro lado, senti muita satisfação de ser amada por alguém com sua capacidade e me sentia realizada em amar tanto alguém tão admirável.
- Pensei que esse problema que me acomete, poderá se repetir e que, voltando pra você, estaria te expondo a novas crises, gerando mais sofrimento. Então decidi que a vida que estou levando é bastante boa, que voltando pra você, terei que enfrentar as dificuldades de que já falei, que posso te criar muitos problemas. Diante dessa análise, resolvi que não voltarei. Sei, porque consegui me lembrar, ainda que vagamente, das coisas que você me disse por telefone, nas vezes que ligou, que gostaria que eu voltasse, mesmo considerando as dificuldades que teríamos que enfrentar. No entanto, confesso que sou covarde demais pra deixar uma vida tranquila e me submeter aos comentários maldosos das pessoas. Sei que eles nunca entenderão que o que me obriga a agir daquela maneira, não depende de mim, é mais forte que eu.
- Não sei o que você acha de tudo isso. Mas, não foi uma decisão precipitada. Pensei muito e aí estão os argumentos pra você me questionar e, se possível entender e aceitar.
-Essa análise demonstra sua capacidade de racionalizar, de entender a emoção e julgar os valores. Você decidiu pelo mais cômodo, pelo que inicialmente é melhor, é a tal da facilidade inicial. No entanto, você foi além, optou, conscientemente, pela vida comum, reconhecendo sua dificuldade de viver se questionando e aos outros, com responsabilidade. Optou por desfrutar o superioridade que já tem, ao invés de buscar subir cada vez mais alto. Talvez seja a opção mais acertada. Se considerarmos o meu exemplo, é lamentável o que consegui: insucesso financeiro, ser considerado uma coisa exótica, até louco, pela grande maioria das pessoas. Que vantagens conseguí sendo assim? Talvez nenhuma, nada!
- Tudo o que defendo é baseado em dados e análises que as pessoas não se dispõe a acompanhar e considerar. Portanto, não servem pra nada. São totalmente inócuas.
- Como sempre te disse, considero que você é eu, de outro sexo, com trinta e dois anos a menos e muito mais bonita. Tinha esperança que você fosse minha herdeira mental, pois tenho certeza que você tem plena capacidade pra isso. Acreditei que, talvez, como você continuará vivendo quando eu morrer, o mistério te dê a chance que negou a mim, de ser reconhecido e, através disso, as pessoas aceitassem minhas teses, ainda que não as compreendendo. Pra isso, você teria que se sacrificar, aprender muito, continuar se expondo a todo tipo de sacrifício, em fim, sofrendo. E pra que? Pra correr o risco de acabar como eu? Sem reconhecimento, desconsiderado, desvalorizado, vendo todo o trabalho de anos se esvair pelo ralo da vida, sem o menor aproveitamento? Acho que você tem razão. Deve continuar lá, e dirigir todos seus esforços pra aproveitar seu potencial em seu benefício, domesticando a solidariedade e aproveitando tudo que o egoísmo pode oferecer, lutando pra não sentir culpa e, a melhor maneira de fazer isso, é se alienando, pensar o mínimo possível, usando a racionalidade pra desobstruir o caminho que te leva à felicidade e ao prazer.
- Você está certa! Não posso te criticar por ter decidido por isso. Acho que é o melhor pra você e, creia, continuo desejando o que for melhor pra você e concordo com sua decisão.
-Não tenho tanta certeza como você. As vezes balanço, fico tentada a voltar e encarar todos esses desafios, essa adrenalina. Minha decisão não é uma coisa tão tranqüila. Sinto que posso estar perdendo muito, que estou sendo fútil, covarde, me atirando no lugar comum, sendo igual ou pior que os outros, Eles não tiveram a oportunidade que tive, de conhecer você, o que você pensa, como você vê as coisas, as análises que consegue fazer, sem perder a sensibilidade, muito pelo contrário, com ela a flor da pele, não desistindo, lutando pelo que você acredita sem negar o direito dos outros de discordar, de se opor ao que você defende, decide com lealdade, com inteligência. Não é fácil abrir mão disso.
- Só que, pra isso, é necessário estar disposto a enfrentar a dose de sacrifício exigido. Não é fácil. No meu caso, não é que eu esteja disposto ao sacrifício. É que não consigo mudar. Portanto, se você consegue, ótimo. Se eu pudesse, faria o mesmo.
- Está arrependido de ter sido o que foi?
- Não. Vivi muito e intensamente. Acredito que poucas pessoas tiveram a oportunidade de viver como eu. Tive muita felicidade, em muitos momentos, das mais variadas formas. Me senti realizando, vencendo desafios, tendo reconhecimentos valiosos, sentindo prazer. Foi muita coisa boa. Só com você, já teria valido a pena todos os sacrifícios exigidos durante toda minha vida. Não poderia reclamar, deveria, ao contrário, agradecer o que recebi. No entanto, estou aqui, sofrendo
09/12/05
A MÃE
Ela acabara de fechar as duas vacas no mangueiro, amarrara as pernas traseiras de uma delas, deixara o bezerro mamar um pouco para descer o leite e o amarrara perto da cabeça da mãe. Estava sentada no banquinho de uma perna só e com o balde entre as pernas, ordenhava a mãe do bezerro. Enquanto as mãos trabalhavam a cabeça pensava sobre sua vida.
Agora estava bem, livrara-se do último marido, um traste, bêbado, que não lhe dava carinho, nem a respeitava. Vivia dizendo que, sozinha, ela não sobreviveria nem uma semana, por não Ter capacidade de ganhar seu prórpio sustento, quanto menos o dos filhos que moravam com ela. Ele ia ver, logo, logo, perceberia que ela não era tão inútil como ele pensava e, se tiver capacidade para isso, poderá verificar que não só vou sobreviver, como vou arrumar minha vida e dos meus filhos.
Lembrou-se do Toninho, primeiro amor de sua vida. Os pais não a deixaram casar com ele porque já estava prometida a outro. Ele não tivera coragem de roubá-la, nem fazer nada para impedir que se casasse com outro. Foi uma decpção! Ela teria fugido com ele, amava-o muito e não pensaria duas vezes para fazê-lo. No entanto, ele se acovardou, desistiu dela, casou com outra, de outro bairro e foi embora.
Casou com o Tião, de quem não gostava. Casou porque os pais obrigaram. Naquele tempo era assim: os pais acertavam com quem as filhas iam casar e elas não tinham direito de opinar. Casou e foi morar com ele. Era uma casinha na roça, como a que ela nascera e vivera até ali: de taipa, chão de terra batida onde se apoiavam alguns móveis velhos. Não tinha um único móvel novo, tudo velho, dado por parentes e vizinhos.
O Tião trabalhava nas redondezas roçando pastos. Bebia muito e, depois do casamento, bebia ainda mais. Era um inferno, passar o dia sozinha mas era pior ainda quando ele chegava. Bêbado como um gambá, fedendo a pinga e à falta de banho. Ele jantava, deitava e dormia. As vezes, acordava de madrugada e queria fazer amor. Era um suplício, mas não se atrevia a negar, abria as pernas e deixava que ele se satisfizesse, como um animal. Virava pro lado e dormia como um porco, roncando. Outras vezes, o sexo acontecia no amanhecer, quando acordavam, antes que ela levantasse pra arrumar a marmita que ele levava pro trabalho. Não sabia que o sexo podia ser prazeroso, era um verdadeiro castigo. Outras mulheres falavam que era bom, muito gostoso, que dava grande prazer. Pra ela, no entanto, era sacrifício, dolorido, repugnante.
Enquanto suas mãos apertavam lentamente as tetas da vaca, o pensamento continuava naquele passado distante. Era uma vida difícil, a única coisa abundante era a água que vinha de uma nascente. O resto era tudo minguado: comida, roupa, bebida, em fim, tudo! Só não era pior porque os parentes e vizinhos ajudavam, principalmente depois que começaram a nascer os filhos. As duas primeiras foram meninas. A sogra, que morava mais perto, era quem mais ajudava. Parece que tinha um sentimento de culpa pelo comportamento do filho. O pai dela também ajudava como podia. Pra ele era mais difícil, morava longe, uns vinte quilômetros, quando podia vinha a cavalo e trazia alguma coisa: frangos, feijão, farinha e coisas assim. Era o que salvava. Se dependesse só do Tião, provavelmente teriam morrido de fome. Pra ele beber, nunca faltou dinheiro, bebia todo dia e, muito.
Depois que nasceu a segunda filha, percebeu que um rapaz da vizinhança começou a se engraçar com ela. Sempre dava um jeito de passar na casa dela. Cada vez uma desculpa: ora pedia água, perguntava se ela não tinha visto uma cabeça de gado que fugira do sítio do patrão, mas a desculpa mais freqüente era sobre se o Tião estava. Ele estava cansado de saber que o Tião nunca estava. Se quisesse encontrá-lo era só ir na venda ou procurá-lo no caminho onde, provavelmente estaria caído. O nome dele era Tonho. Sempre sorridente, um sorriso malicioso, atrevido. Depois de alguns dias, ele se declarou, disse que estava apaixonado por ela. Ela o rejeitou automaticamente, sem pensar. Ele era simpático e agradável, mas ela era casada e não poderia trair o marido, por mais ruim que fosse.
Por que não? Ela se fizera essa pergunta durante aquela noite. Por que não receber daquele homem o que o marido lhe negava? Não! Não podia fazer isso! Era uma mulher casada, não podia se meter com outro homem. Era errado. Errado? E o que era certo? Aguentar um marido bêbado, irresponsável, nojento? Por que não tentar Ter uma coisa boa com outro? Não! Isso não. Não seria certo. Já pensou se alguém descobre? Ai sim é que o negócio vai ficar feio. Não! É melhor esquecer disso. Se ele passar aqui de novo, vou ameaçar contar pro Tião e pra todo mundo, que ele está me assediando. Mas e ai? Continuo nessa vida? Que vida? Isso não é vida, é martírio! Passou a noite em claro, a cabeça oscilando entre o sim e o não.
No dia seguinte ele não apareceu. Ela esperou, ansiosamente, o dia todo. A noite chegou e ele não apareceu. Será que desistiu? Será que não virá mais? Sentiu um aperto no peito, uma tristeza profunda.
Durante a madrugada o Tião acordou-a Ela automaticamente abriu as pernas e deixou que ele a usasse. Pensou como seria com o Tonho e se perdeu em pensamentos, nem percebeu quando o Tião saiu de cima. Escutou o ronco, virou de lado e dormiu pensando em como seria com o Tonho.
A vaca fez um movimento com a perna e ela, como que acordando, verificou que continuava ordenhando mesmo não saindo mais nem um pingo de leite. Soltou a vaca e o bezerro, prendeu a outra, repitiu o ritual e começou a ordenha-la.
A filha gritara lá da casa dizendo que já ia. Ela trabalhava num sítio vizinho, limpava a casa e fazia comida para o patrão. Havia se separado do marido há alguns meses. Marido é modo de dizer. Não tinha casado de papel passado. Ela tinha dezoito anos e ele cinqüenta. Foi uma coisa maluca, se conheceram, se apaixonaram e não teve o que impedisse que se juntassem. Ela bem que tentara, brigou, gritou, ameaçou mas foi o mesmo que nada. Não teve o que afastasse os dois. Ela foi embora com ele, mesmo contra os protestos dela. Viveram juntos por sete anos. Tinham voltado pra cá há uns dois anos. Ele começou a reclamar muito dela, principalmente de vir muito na minha casa, de conversar muito comigo. Imagina! Reclamar da filha conversar com a mãe. Ele é um chato. Pensa que é mais que todo mundo, que só ele sabe das coisas, que os outros são todos ignorantes. Até que demorou muito pra ela perceber isso, eu percebi isso logo no começo, ele nunca me enganou! Ela fez uma festinha pro irmão, no aniversário dele e o marido achou ruim. Onde já se viu, achar ruim porque a mulher fizera uma festinha pro irmão! Ela decidiu largar dele eveio aqui pra casa. Depois de uns dias, encontrou um ex-namorado e foi morar com ele. Ele estava sozinho, bem de vida, com negócios próprios. Pensei que, finalmente, ela tinha se dado bem. Largara um velho, pobre e chato e, agora, tinha a chance de recomeçar a vida com alguém que poderia lhe oferecer uma vida boa, com conforto e, quem sabe, até luxo. Eu achei que também poderia me dar bem, afinal ela estando bem, não se recusaria a me ajudar. Foi bom, ela arrumou um dinheiro no banco e pagou minhas dívidas, que já estavam velhas. Eram de uns móveis que eu tinha comprado e uma dívida que ficara pendente na venda no bairro que eu morava, perto da casa da minha mãe. Mas não deu certo. Ela não agüentou o homem e largou dele também. Voltou aqui pra casa.
Com ela aqui as coisas ficam mais fáceis. Tenho companhia e ela vai me ajudar nas contas, na despesa da casa. Agora que nem ela nem eu temos marido pra atrapalhar, vamos viver a vida sem Ter que dar satisfação pra ninguém. É uma pena que a outra filha não esteja aqui conosco. O marido dela é outro chato, insuportável. Ela já tentou largar dele mas desistiu, foi iludida pela conversa dele. Até que foi bom. Se ficasse aqui, com a menininha de menos de dois anos, teria dificuldade pra arrumar serviço. Ela não é como esta, que é esperta, sabe negociar, arrumar as coisas. Aquela é mais tonta, só sabe trabalhar mas não sabe ganhar dinheiro. Ao invés de me ajudar, eu que teria que ajudá-la. Já tenho os três moleques pra cuidar, que dão trabalho de sobra e não ajudam nada. É melhor ela ficar com o marido. Ele a sustenta com a filha, cuida delas e, afinal, não é tão ruim assim. Até já me ajudou um pouco, devo favor a ele. Tomara que sejam felizes e me deixem sossegada. Trabalho e problemas já tenho de sobra. Até que agora as coisas melhoraram, sem marido pra encher o saco, com a filha junto de mim, me ajudando e eu ajudando ela. Perto do que vivi até aqui, estou no paraíso! Acabou o leite da vaca. Soltou as duas e os bezerros no pasto e foi pra casa separar o leite da despesa e fazer queijo com o resto.
Ela é uma mulher ignorante, analfabeta, sem conhecimentos além dos adquiridos na comunidade. Não absorveu os conhecimentos que teve acesso na convivência com gente mais culta, os patrões, por exemplo. Aparentemente, as dificuldades passadas durante a vida, não ajudaram a construir conhecimento. Parece que continua como sempre foi, com os conhecimentos adquiridos na infância e adolescência. Passa por experiências e continua a mesma, não muda.
O conhecimento básico na roça se limita a valores morais, religiosos, convivência com o meio e as pessoas que o ocupam. Além disso, são conhecimentos para o trabalho e o folclore regional, incluindo estórias, principalmente sobre o sobrenatural: Assombrações, saci, mula sem cabeça, etc..
A maioria dessas pessoas são de uma falsidade incrível. Procuram Ter um comportamento padrão, amigável, de boa convivência. Não criticam nem agridem diretamente, fazendo-o na forma do que se pode chamar de “fofoca”, isto é: criticam em conversas com terceiros, nunca com a pessoa objeto dessa crítica. Esse tipo de comportamento é comum, uma grande hipocrisia. Grande parte das pessoas age assim e convivem normalmente. De vez em quando acontecem atritos e o que foi dito acaba chegando aos ouvidos dos criticados. Estes, normalmente, usam os exageros e distorções provocadas pelo diz que diz para se defender, esquivando-se de encarar o verdadeiro motivo da crítica, que na maioria das vezes, realmente aconteceu. E assim a comunidade vai vivendo, de falsidade em falsidade. Fazem isso naturalmente, sem culpa e, provavelmente, sem consciência, simplesmente como conseqüência de cultura ou folclore. É uma falsidade tremenda e duradoura. Numa observação mais atenta, verifica-se a existência de ódios curtidos por muitos anos entre pessoas que convivem normalmente como verdadeiros amigos. É praticamente impossível confiar em pessoas assim.
A maioria dessas pessoas são religiosas e, algumas até, fanáticas. Acreditam em Deus, que ele pode tudo, vê tudo, sabe de tudo que as pessoas fazem, que castiga quem erra e temem esse castigo. Acreditar nisso e temer o castigo, não as impede de agir em desacordo com o que acreditam e, até, pregam aos outros. Se conseguem ser falsos com Deus, mesmo acreditando que ele sabe e vê tudo, dá pra imaginar do que são capazes contra simples mortais.
No entanto, não dá para acreditar que façam isso conscientemente, planejadamente, utilizando a razão para arquitetar sua atitudes. Simplesmente se comportam assim, como a maneira mais natural, sem culpas, sem consciência do mal que causam, mesmo quando percebem que estão sendo vítimas de quem age exatamente como eles e verificam o mal que sofrem. Reclamam do que sofrem, mas não tem consciência de que provocam a mesma coisa nos outros, por suas atitudes. Claro que nem todos são tão inconscientes, alguns agem com a intenção objetiva de prejudicar e não medem esforços para atingir seus objetivos.
Por que essas pessoas são assim? Será possível mudá-las? Fazê-las perceber o que fazem e compreender os males que isso causa? Se é possível, o que deve ser feito? Aparentemente, mexer nisso é como enfiar a mão em casa de marimbondos!
Depois de fazer o queijo, a mulher foi cuidar da horta. O filho menor, Felipe, de quatro anos, queria ajudar mas ela não deixou e mandou-o brincar fora, que fosse brincar no balanço que o patrão fizera numa árvore próxima. Acocorada sobre um canteiro de alfaces deixou-se levar pelo pensamento. O Tonho aparecera no dia seguinte, no começo da tarde. Chegou devagar, como quem teme ser repelido mas mostrando que não tinha desistido. Ela sentiu novamente aquela sensação ruim de que trair o marido era errado e, pior, pecado. No entanto, estava louca de desejo de ser apertada pelos braços dele, sentir tudo que ele poderia lhe oferecer. Ele vinha subindo pelo caminho que ligava a estrada à casa. Ela estava no tanque, onde acabara de colocar as roupas no chão, ao lado. O coração batia descompassado, o desejo alvoroçado, o sentimento de pecado, o medo de que chegasse alguém; tudo se misturava dentro dela, cada um querendo atropelar o outro para influir na decisão que ela teria que tomar. Ele foi chegando devagar, parecia estar com medo porém, decidido. Diminuiu o comprimento dos passos mas continuou se aproximando. Ela pegou uma camiseta no monte de roupa, molhou-a e começou a ensaboar, fazendo de conta que não lhe dava atenção. Ele continuou se aproximando, lentamente. Ela começou a esfregar a camiseta, o peito apertado, a cabeça em turbilhão, querendo, desejando, repelindo, tentada a mandá-lo embora, morrendo de desejo. Ele parou a uns três ou quatro passos dela e ficou olhando-a Ela esfregava a camiseta com movimentos descontrolados, a respiração ofegante, um calor muito forte subindo do peito, passando pelo pescoço, esquentando a cabeça, fazendo a confusão interna aumentar.
Ele olhou pra estrada e verificando que ninguém os observava, aproximou-se por trás e abraçou-a pela cintura. Ela sentiu as pernas bambas, ficou paralisada, as mãos apoiadas na camiseta sobre o esfregador do tanque. Ele aproximou a boca do pescoço dela. Ela gemeu um não, quase imperceptível, largou a camiseta e apertou as mãos dele que apertavam a sua barriga.
Ele puxou-a para o mato, próximo da casa, abraçou-a e colou sua boca a dela, num beijo desesperado, apertando os lábios, as línguas se buscando, roçando; as mãos se movimentando, buscando cada pedaço, apertando costas, bunda, pescoço, subindo e descendo, em movimentos frenéticos. Durante o beijo, depois do gozo final, ouviram as filhas chamando por ela. Estremeceu e teve o impulso de correr. Ele a segurou, tampou sua boca com a mão e fez-lhe sinal para que ficasse calma. Recomendou-lhe que se recompusesse e aparentasse tranqüilidade, dirigindo-se para a casa com naturalidade. Ele iria embora pelo mato, sem que ninguém o visse.
Uma filha perguntou sobre o que estava fazendo no mato e ela disse que tinha ido verificar um barulho que ouvira, mas que não encontrara nada de estranho. As meninas começaram nova brincadeira e ela foi pro tanque. Pegava as roupas, molhava-as, ensaboava, esfregava, automaticamente. O corpo ainda meio entorpecido, uma sensação gostosa, sentia-se leve, mole, feliz. Afinal conhecera o prazer, a felicidade, já não era sem tempo! Será que ele voltará amanhã?
A ffilha mais velha, limpava a casa dos patrões, tirando o pó dos móveis, varrendo o chão, passando pano. Enquanto isso pensava:
Que será que vai acontecer na minha vida? Senti que precisava de liberdade e abandonei o compromisso que tinha. Vivi sete anos com ele e não foi ruim. Nos últimos tempos me sentia insatisfeita e as críticas dele começaram a me incomodar. Senti uma força me tirando daquela relação. Precisava me libertar. Fiquei meio perdida, sem saber direito o que fazer. Encontrei o Paulo, com quem já tinha tido um caso, antes do último relacionamento. Ele me convidou e aceitei experimentar um novo relacionamento. Não deu certo e nem poderia dar. Já não tinha dado na primeira vez e, como ele continuasse o mesmo, não teria como dar certo. Voltei pra cá, pra casa de minha mãe. Sabia que o Zé me procuraria e faria o possível para a reconciliação. Tentei evitar mas não consegui argumentos suficientes e, para me livrar da pressão que ele fazia, resolvi propor um relacionamento descompromissado até verificarmos como as coisas se encaminhariam no futuro. A princípio ele aceitou e mantivemos esse relacionamento por um mês mais ou menos. Pra mim não estava ruim, quando sentia vontade de vê-lo, procurava-o No entanto, ele mostrava desagrado por aquele tipo de relacionamento. Passou a questionar minhas atitudes, acusando que eu faltava com a sinceridade e que, dessa maneira não seria possível que continuássemos nos relacionando. Não tive dúvida em optar por terminar. Finalmente a liberdade pretendida. O que fazer com ela? O que vai acontecer? Sei que vai acontecer alguma coisa, mas não tenho a menor idéia do quê.
Morando com minha mãe e os irmãos, a vida não está ruim. Se falta conforto e sobra bagunça, estou tranqüila, sem maiores compromissos. Faço o que quero, sem Ter que dar satisfação a quem quer que seja. Estou livre para o futuro e para o que ele me reservar. O que será?
Me passou pela imaginação uma imagem reveladora da mesquinhez do ciúme: eu passava na roça com um carrão, uma camionete incrementada. Ela lavava roupa num tanque, gorda e rodeada de crianças pequenas.
No começo da noite resolvi escrever duas teses: uma de acusação, defendendo a nossa separação e outra de defesa, com a intenção de argumentar a favor da reconciliação. Conclui a tese de acusação por volta da meia noite e iniciei a de defesa.
Dormi bem.
Sigo sem fome.
Terminei de escrever a defesa, na fábrica, pela manhã. Não tinha nada pra fazer. Fiquei satisfeito com o escrito. Falta de atividade é terrível! Passei a tarde agoniado.
Estou ansioso por um telefonema dela!
Me bateu medo, que não ligue. Que não queira saber de meus argumentos.
Estou acreditando que possa voltar. É a esperança, uma sobrevida!
Sinto que possa voltar. Estou com medo que não!
O medo maior não é que não volte. É que se imbecilize.
Pela primeira vez senti fome a noite. Pouca, mas, fome.
Consegui comer miojo. Dormi pesadamente.
A ansiedade, agora, é por um telefonema. Angústia.
Estou esperando que me ligue, me informe de como estão as coisas.
Se ela se sentiu atraída pelo rapaz e ele não for um animal estúpido, ela estará sentindo os prazeres da paixão, por mais que se comova com minha situação e por mais que ainda me ame.
Ligar pra mim não lhe trará prazer algum, correndo, ainda, o risco de ouvir lamentações e pedidos de reconciliação, quando ela ainda não se definiu. Nem poderia definir, afinal, por maior que seja a paixão, só o tempo fará o rapaz mostrar os defeitos que possa ter e, só aí, ela poderá perceber se a escolha deve pender pra ele, pra mim ou pra nenhum dos dois. Portanto, é bastante compreensível que relute em me ligar e adie o máximo possível.
Por meu lado, estou sofrendo sua falta e, pior ainda, a possibilidade de não tê-la mais!
Meu amor próprio está ferido, em fim, sou só sofrimento, angústia e ansiedade por uma solução que me seja favorável.
Sem saber o que está acontecendo (a maior probabilidade é que esteja curtindo o rapaz), fico imaginando outras possibilidades como: Ela fez isso por vingança, por não ter recebido o dinheiro que eu prometera, e mandei, mas que ela não recebera. Culpou-me pelo não envio do dinheiro, deixando-a sem dinheiro, sem gasolina. Após ter verificado que eu havia mandado o dinheiro, sentiu-se culpada por ter me julgado mal e não tem coragem de retratar-se. Pode estar arrependida, querendo voltar atrás mas, a prepotência, não lhe permite admitir o erro (na verdade não errou). Se ela me ligasse, poderia dizer-lhe do meu apoio, que continuo amando-a, que as portas estão abertas, que posso e quero ajuda-la, sem encher o saco.
No fundo, no fundo; sou tentado, pela emoção, a culpa-la pelo meu sofrimento quando, no máximo, ela está sendo egoísta, aproveitando o bom e evitando o mal.
No final da tarde, fui tomar cerveja com amigos. Voltei meio anestesiado mas, como sempre acreditei, o alcool não ajuda, acentua o estado de espírito e, estou sofrendo mais!
Vamos ver como vai ser a noite.
Sigo sem fome.
Hoje é aniversário da minha infelicidade: uma semana.
Dormi pouco mas bem.
O pensamento parasita, induzido pela emoção, continua. Menos ruim, sonhei com ela. Morávamos juntos, como amigos. Senti-me atraído, encostei nela, lembrei que já nos amamos. A calça furada.
No domingo pela manhã, ela ligou de novo.
-Oi tudo bem?
-Tudo, e ai?
-Tudo bem. Você tava namorando no telefone?
-Não por que?
-Já liguei varias vezes e só dava ocupado.
-Não usei o telefone hoje.
-Fui na cidade levar a avó, que vai ser operada. Você não pode depositar o dinheiro na minha conta? Pedir pro pai arrumar o dinheiro, nessa situação, é embaçado.
-Que conta você tem?
-A do Unibanco.
-E onde você sacará o dinheiro?
-Em Paraiso.
-E quanto você vai precisar?
-Não sei, tenho que mandar arrumar o farol do carro.
-Isso não precisa. Não foi só o vidro que quebrou?
-Foi e amassou um pouco em cima
-No capô?
-É.
-Não tem problema. Pode viajar assim mesmo.
-Mas os guardas não encher o saco?
-Não. qualquer coisa, diga que quebrou na estrada e que vai arrumar logo que chegar.
-Tá bom. Então é só pra gasolina, que está a zero e pro pedagio.
-Tá legal. Eu mando uns setenta ou oitenta reais que, pra isso da. Lá a gente manda arrumar o farol e precisa, pelo menos, colocar dois pneus.
-Já coloquei, mandei balancear e alinhar também.
-Sem trocar o que precisava?
-Trocou tudo.
-Ainda que mal lhe pergunte: como arrumou dinheiro pra fazer isso?
-Depois eu te conto. Quando você vai depositar?
-Amanhã a noite
-Então , terça-feira ja deve estar na conta.
-Positivo. você passou pra ver se a carta já tinha chegado?
-Nen lembrei, já estou em Gonçalves.
-E ai? o que deu ontem?
-Não apareceu ninguém. Tava chovendo muito. Não deu pra resolver nada. Durante a semana eu te ligo.
-Liga mesmo.
-Pode deixar. Um beijo. chau.
-Outro, chau.
EPÍLOGO
Parece não restar dúvida de que o objetivo do mistério foi atingir o amado que tanto a ama. Ele foi atingido em cheio, totalmente. Sofreu cada minuto, brigou ferozmente ao lado da razão, contra a emoção rancorosa e vingativa. Não se deixou levar pela emoção, por isso sofreu toda a intensidade da sua ação, provocando-o a cada segundo, ocupando-lhe a mente, dificultando o uso da racionalidade, interferindo nela, manipulando-a, usando-a para justificar suas vontades. Colocou-lhe na mente as imagens mais doloridas, sem descanso, sem o mínimo de contemplação nem piedade. Usou e abusou da ansiedade, do ciúme, da angústia, provocando-o à vingança. Todos os participantes dessa história sofreram de alguma maneira, no entanto, ele foi o totalmente atingido, sofrendo até o último minuto. Por isso a afirmação de que ele era o objetivo do mistério. Falta descobrir qual o motivo. Para ou por que? Teria ele feito algo para merecer tamanho castigo? Ou o motivo seria o aprendizado propiciado pela experiência, que deva ser usado em algo que lhe esteja preparado?
É o mistério! Como tal, não é explicável. A lógica não tem como explicar essa história, principalmente, considerando as pessoas envolvidas, o casal protagonista. Não há o que explique a passividade dela, submetendo-se a um casamento com todos os ingredientes que ela sempre repudiou; desacreditando da capacidade de compreensão do seu amado, acreditando que a repudiaria, condenando-a por algo que nem cometera. Quem a conhece, sabe da incoerência entre seu comportamento, seu caráter, em fim, sua personalidade.
A interferência de entidades, que religiosos chamariam de espirituais, de maneira clara, como se estivessem de plantão para guiar os fatos e, principalmente, dirigir o desfecho; é outra demonstração de que forças ocultas provocaram, dirigiram e promoveram o desfecho da história. Resta esperar o que está reservado para o futuro, o que espera esses dois!
Moraram em Campo Grande até o final do ano. Ele continuava na empresa, com muitos problemas, pois diziam que tinha razão nos diagnósticos que formulava e nas recomendações feitas mas não tomavam a iniciativa de coloca-las em prática, nem lhe davam autonomia para fazê-lo e cobravam resultados. Ele estava ficando maluco com a situação. No meio do ano, desistiu definitivamente.
Conversou com ela, que acompanhava o desenrolar de tudo, pois não tinham qualquer segredo sobre absolutamente nada, e resolveram que ele tentaria arrumar um emprego através de uma consultoria de empregos de nível nacional. Inscreveu-se numa delas e passou a, diariamente, verificar via internet se havia propostas. O tempo foi passando e nada de resultados positivos. Para sobreviver, faziam salgadinhos, café e suco, que ele vendia em oficinas da região. Paralelamente ele fabricava, em casa, escadas metálicas e churrasqueiras e tentava vendê-las, também. Foram tempos muito difíceis mas tinham um ao outro e isso bastava pra suportarem aquilo e muito mais. Ela estudava o primeiro ano do segundo grau, numa escola em frente da casa deles, onde se matriculara no dia seguinte a sua chegada lá.
Em novembro, sua irmã lhe ligou pedindo-lhe, fosse no final do ano, pra ficar com ela, pois estava grávida e o parto deveria acontecer no começo do ano. Ela respondeu-lhe que seria difícil, que estava a mais de mil quilômetros de lá e que estávamos tendo que lutar muito pra enfrentar as dificuldades.
Ela comentou o telefonema com ele e disse que sentia que algo lhe dizia deveriam ir pra lá, que a solução do problema deles passava por lá. Conversaram muito a esse respeito e ficaram de avaliar melhor. Nos dias seguintes, continuaram conversando sobre a possibilidade de irem pra casa da irmã, que morava em uma fazenda, onde o marido era caseiro. A irmã lhe dissera que, se ela fosse, poderia trabalhar pra ela enquanto a gravidez e o pós parto o fizessem necessário e que, depois ela poderia continuar trabalhando para os proprietários da fazenda, ali mesmo.
Depois de analisar prós e contras, resolveram arriscar e foram pra casa da irmã dela, sem perspectiva de trabalho pra ele.
quarta-feira, 16 de janeiro de 2008
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